O Regresso de Tiago: Entre o Passado e o Perdão
— Mãe, por favor, deixa-me entrar. — A voz dele tremia, misturando medo e esperança.
Fiquei ali, parada, com a mão ainda na maçaneta, o coração a bater tão forte que quase me doía. O Tiago. O meu Tiago. O filho que desapareceu há quase cinco anos, sem uma palavra, sem um bilhete, sem um telefonema. E agora estava ali, à minha frente, com o rosto mais magro, barba por fazer e olhos cansados. Ao lado dele, uma rapariga de cabelo escuro e olhar desconfiado segurava-lhe a mão com força.
— O que é que estás aqui a fazer? — perguntei, a voz mais fria do que queria admitir. — E quem é ela?
Ele baixou os olhos, como fazia em pequeno quando sabia que tinha feito asneira. — Esta é a Inês. Podemos falar lá dentro?
Hesitei. Parte de mim queria abraçá-lo, sentir o cheiro do seu cabelo como quando era criança. Outra parte gritava todas as noites de insónia, todas as lágrimas derramadas, toda a raiva acumulada durante anos de silêncio. Mas acabei por me afastar e deixá-los entrar.
Sentaram-se à mesa da cozinha. O cheiro do café arrefecido pairava no ar. A Inês olhava em volta, inquieta, como se esperasse ser expulsa a qualquer momento.
— Mãe… — começou o Tiago, mas interrompi-o.
— Cinco anos, Tiago! Cinco anos sem uma palavra! Achaste que eu não merecia saber se estavas vivo ou morto?
Ele passou as mãos pelo cabelo e suspirou. — Eu sei… Não há desculpa. Mas eu precisava de fugir. De tudo. De mim próprio.
Olhei para a Inês. — E tu? O que fazes aqui?
Ela engoliu em seco antes de responder. — Eu… Eu não tenho para onde ir.
O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado. O Tiago pegou-lhe na mão outra vez.
— A Inês… Ela salvou-me, mãe. Se não fosse ela, eu não estava aqui hoje.
Quis perguntar «salvou-te de quê?», mas calei-me. Não queria mostrar fraqueza.
Os dias seguintes foram estranhos. O Tiago e a Inês ficaram no quarto dele, aquele quarto que eu nunca consegui mudar desde que ele partiu. À noite ouvia-os falar baixinho, às vezes choravam. Eu fingia que não ouvia.
No terceiro dia, a minha irmã Clara veio visitar-me.
— Então? Já falaste com ele? — perguntou ela enquanto descascava batatas comigo na cozinha.
— Não sei se consigo perdoar, Clara. Ele deixou-me sozinha com o pai doente… E agora aparece assim, como se nada fosse.
A Clara pousou a faca e olhou-me nos olhos.
— Tu sabes lá o que ele passou. Às vezes fugimos porque não aguentamos mais.
Naquela noite, bati à porta do quarto do Tiago.
— Podemos falar? — perguntei.
Ele fez sinal para eu entrar. A Inês estava sentada na cama, abraçada aos joelhos.
— Quero ouvir a vossa história — disse eu, sentando-me na cadeira junto à secretária cheia de pó.
O Tiago começou a falar. Contou-me como se sentiu sufocado depois da morte do pai, como não aguentava ver-me a definhar de tristeza e raiva. Disse que tentou arranjar trabalho em Lisboa, mas acabou por se perder em más companhias. Falou de noites passadas na rua, de fome e frio.
A Inês contou-me dela: cresceu num bairro difícil do Porto, mãe alcoólica, pai ausente. Fugiu de casa aos dezasseis anos para escapar aos maus-tratos. Conheceram-se numa noite gelada junto ao cais do Sodré; partilharam um banco de jardim e uma manta velha.
— Ele deu-me metade do seu pão — disse ela, com um sorriso tímido. — Foi a primeira vez em muito tempo que alguém foi bom para mim sem querer nada em troca.
Senti um nó na garganta. Olhei para o Tiago e vi nele o menino generoso que sempre foi.
— Porque é que nunca ligaste? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele encolheu os ombros. — Tinha vergonha. Achava que nunca me ias perdoar.
Ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Depois levantei-me e abracei-o. Chorei como já não chorava há anos.
Os meses passaram devagarinho. A Inês arranjou trabalho numa pastelaria da vila; o Tiago começou a ajudar o senhor António na oficina de bicicletas. Aos poucos foram ganhando o seu espaço cá em casa — e no meu coração.
Mas nem tudo foi fácil. Os vizinhos começaram a falar.
— Ouviste dizer que o filho da D. Teresa voltou? E trouxe uma rapariga… Aquilo não cheira bem! — ouvi a D. Amélia sussurrar à porta do café.
No mercado, sentia os olhares de soslaio e os cochichos atrás das costas. Uma tarde, a Inês chegou a casa a chorar: tinham-na insultado na rua, chamaram-lhe nomes feios por causa do passado dela.
— Não quero ser um peso para vocês… — disse ela entre soluços.
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe as mãos.
— Tu agora fazes parte da nossa família. Quem nunca errou que atire a primeira pedra.
O Tiago ouviu tudo da porta e veio abraçar-nos às duas.
Com o tempo, as pessoas foram aceitando-os — ou pelo menos deixaram de comentar tanto. O Tiago pediu a Inês em casamento numa tarde de primavera no jardim das traseiras; fizeram uma festa simples mas cheia de alegria e emoção.
Hoje olho para trás e percebo quanto tempo perdi presa ao orgulho e ao medo de sofrer outra vez. Se não tivesse aberto aquela porta naquele dia cinzento de novembro, talvez nunca tivesse conhecido verdadeiramente o meu filho adulto — nem aprendido tanto com aquela rapariga frágil mas corajosa que agora chamo de filha.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixamos o passado ou os preconceitos impedir-nos de amar? E será que algum dia aprendemos mesmo a perdoar completamente?