O Peso do Copo: Uma História de Água e Mágoas

— Não vês que não fazes nada direito, Miguel? — gritou o meu pai, a voz ecoando pela cozinha como um trovão inesperado numa tarde de verão.

Eu estava parado, com um copo de água na mão, sentindo os dedos tremerem. O copo parecia pesar toneladas. O olhar da minha mãe, silenciosa ao canto da mesa, era ainda mais doloroso do que as palavras do meu pai. Ela não dizia nada, mas os olhos dela suplicavam: “Por favor, não respondas. Não tornes isto pior.”

A minha irmã, Inês, fingia estar entretida com o telemóvel, mas eu sabia que ouvia cada palavra. O silêncio entre nós era denso, quase palpável. O relógio da parede marcava 21h17, e eu só queria desaparecer.

— Se ao menos fosses como o teu primo Rui… — continuou o meu pai, agora mais baixo, mas cada sílaba era uma faca.

O Rui. O eterno exemplo. Faculdade de Engenharia no Porto, estágio na Alemanha, namorada bonita e educada. Eu? Um curso de Letras interrompido, trabalhos precários e uma relação falhada com a Sofia, que ainda me assombrava nas noites mais longas.

Apertei o copo com mais força. A água tremulava, ameaçando saltar para fora.

— Miguel, vai descansar — disse finalmente a minha mãe, num sussurro cansado.

Subi para o meu quarto sem dizer palavra. Fechei a porta e encostei-me a ela, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. Sentei-me na cama e olhei para o copo de água ainda na mão. Era só um copo. Água e vidro. Mas parecia conter todo o peso das expectativas dos outros.

Lembrei-me de uma aula na faculdade, antes de desistir. A professora perguntara: “Quanto pesa um copo de água?” Todos rimos da pergunta óbvia. Ela sorriu e explicou: “Depende de quanto tempo o seguramos.” Na altura achei graça. Agora fazia sentido demais.

O telemóvel vibrou. Mensagem da Inês: “Desculpa por hoje. Queres falar?” Não respondi. Não queria arrastá-la para o meu naufrágio.

Deitei-me vestido, olhos fixos no teto. Ouvia os passos do meu pai no corredor, a voz abafada da minha mãe ao telefone com a tia Lurdes, provavelmente a desabafar sobre o filho problemático.

No dia seguinte acordei cedo. O sol entrava tímido pela janela. Desci à cozinha e encontrei a minha mãe a preparar café.

— Dormiste bem? — perguntou ela, sem me olhar nos olhos.

Assenti com a cabeça. Sentei-me à mesa e fiquei a olhar para as mãos. Ela pousou uma chávena à minha frente e sentou-se ao meu lado.

— O teu pai… ele só quer o melhor para ti — disse ela, voz trémula.

— Eu sei — respondi, mas não sabia se era verdade.

Ela pousou a mão sobre a minha. — Não tens de ser igual ao Rui. Só quero que sejas feliz.

As lágrimas vieram sem aviso. Chorei ali mesmo, com a cabeça entre as mãos, enquanto ela me abraçava em silêncio.

Naquela tarde decidi sair de casa. Fui até ao rio Douro, sentei-me num banco e fiquei a ver os barcos passarem. O vento frio cortava-me a cara, mas era melhor do que o calor sufocante das discussões em casa.

Peguei no telemóvel e liguei à Sofia. Não atendeu. Deixei uma mensagem: “Desculpa por tudo. Espero que estejas bem.” Não esperava resposta.

Fiquei ali horas, perdido nos meus pensamentos. Lembrei-me de quando era criança e acreditava que podia ser tudo: astronauta, escritor, até jogador do Benfica. Agora sentia-me incapaz até de segurar um simples copo de água sem tremer.

O telefone tocou. Era a Inês.

— Miguel? Estás bem?

— Estou… mais ou menos.

— Queres vir cá a casa? Os pais saíram para jantar com os tios.

Aceitei o convite e fui ter com ela. Encontrámo-nos na sala, onde ela já tinha preparado chá e bolachas Maria.

— Sabes — começou ela — eu também sinto pressão. Só que ninguém repara porque sou “a filha certinha”.

Olhei para ela surpreendido.

— Achas que é fácil ser sempre a boazinha? Nunca posso falhar porque senão desiludo toda a gente…

Ficámos em silêncio durante uns minutos, cada um perdido nos seus próprios medos.

— E se largássemos o copo? — perguntei de repente.

Ela riu-se.

— Como assim?

— Se deixássemos de tentar agradar a toda a gente? Se fizéssemos só aquilo que nos faz bem?

Ela pensou por uns segundos e depois sorriu tristemente.

— Talvez um dia consigamos…

Nessa noite escrevi uma carta ao meu pai. Não tive coragem de lha entregar logo, mas escrevi tudo: as mágoas, as expectativas esmagadoras, o medo constante de falhar. Escrevi também sobre o copo de água e sobre como ele pesava cada vez mais quanto mais tempo o segurava.

Guardei a carta na gaveta da secretária e adormeci com uma estranha sensação de alívio.

Os dias passaram devagar. As discussões diminuíram, talvez porque eu já não respondia nem tentava justificar-me tanto. Comecei a procurar trabalho noutras áreas — não por obrigação, mas porque queria experimentar algo novo. Inscrevi-me num curso de escrita criativa na biblioteca municipal do Porto.

Certa tarde encontrei o meu pai na varanda, olhar perdido no horizonte.

— Posso sentar-me? — perguntei.

Ele assentiu em silêncio.

Ficámos ali lado a lado durante minutos intermináveis até ele finalmente falar:

— Sabes… eu também tive medo de falhar quando era novo. O avô era duro comigo… nunca achava nada suficiente.

Olhei para ele surpreendido. Pela primeira vez vi fragilidade naquele homem sempre tão seguro de si.

— Só quero que tenhas uma vida melhor do que eu tive — disse ele baixinho.

— Eu sei… Mas preciso encontrar o meu caminho à minha maneira — respondi.

Ele assentiu novamente e pousou a mão no meu ombro. Não dissemos mais nada naquela noite, mas senti que algo tinha mudado entre nós.

Alguns meses depois consegui um emprego numa pequena editora em Matosinhos. Não era glamoroso nem dava muito dinheiro, mas sentia-me útil e feliz pela primeira vez em anos.

A carta ao meu pai ficou esquecida na gaveta até ao dia em que ele entrou no meu quarto à procura de um livro antigo e a encontrou por acaso. Leu-a em silêncio enquanto eu esperava à porta, coração aos pulos.

Quando terminou levantou-se e abraçou-me sem dizer palavra. Foi um abraço apertado, cheio de tudo aquilo que nunca conseguimos dizer em voz alta.

Hoje olho para trás e percebo: o copo nunca foi pesado por si só; era eu que insistia em segurá-lo tempo demais, com medo de largar as expectativas dos outros e enfrentar as minhas próprias escolhas.

E tu? Que copos tens segurado há demasiado tempo? Será que já está na hora de os largares também?