O Natal em que a minha nora quis expulsar-me de casa — e tudo mudou
— Não posso mais, Marta! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas ameaçavam cair. — Isto é a minha casa! O que é que te passou pela cabeça?
Ela olhou-me com aqueles olhos frios, quase desconhecidos. — Não é nada pessoal, Dona Judite. Só já não dá. O espaço é pequeno, o Pedro precisa de um escritório, as crianças não têm privacidade… — largou o papel em cima da mesa, como se fosse uma conta qualquer. Li: “Tem de sair até ao fim do mês.”
O silêncio caiu sobre a sala como uma manta pesada. O cheiro do bacalhau com broa misturava-se com o perfume do pinheiro e das velas, mas tudo me parecia irreal. O Pedro, meu filho, desviou o olhar para o prato. Os meus netos, Leonor e Tomás, brincavam no tapete sem perceberem a tempestade que se abatia sobre mim.
A minha cabeça rodopiava. Tantos Natais passados ali, a encher a casa de luz e risos. O António, meu marido, já não estava cá há três anos. Desde então, agarrei-me à rotina, à família, ao pouco que me restava. Agora, parecia que até isso me queriam tirar.
— Marta… — tentei apelar ao coração dela. — Eu ajudei-vos tanto! Quando o Tomás nasceu, fui eu que fiquei noites sem dormir para tu descansares. Quando o Pedro ficou desempregado, foi a minha reforma que pagou as contas da casa…
Ela suspirou, impaciente. — Eu sei, Dona Judite. Mas as coisas mudam. Não podemos viver todos juntos para sempre.
O Pedro finalmente falou, num murmúrio: — Mãe… talvez seja melhor assim. A Marta tem razão.
Senti uma facada no peito. O meu próprio filho…
Levantei-me da mesa e fui para o quarto. Fechei a porta e deixei-me cair na cama. Oiço ainda os risos das crianças lá fora, alheias ao drama dos adultos. Peguei na fotografia do António na mesinha de cabeceira.
— O que faço agora, António? Para onde vou? — sussurrei.
Naquela noite não dormi. A cabeça cheia de memórias: o António a pendurar luzes na varanda, eu a preparar rabanadas com a Leonor pequena ao colo… E agora? Ia acabar os meus dias num lar? Num quarto alugado? Senti-me velha e descartável.
No dia seguinte, tentei falar com o Pedro. Ele evitava-me. A Marta mantinha-se fria e distante. Só os netos vinham ter comigo, pedindo histórias e colo. Era por eles que eu aguentava.
Os dias passaram arrastados. Fui vendo casas para alugar na vila vizinha, mas tudo era caro demais para a minha pensão. Pensei em pedir ajuda à minha irmã em Lisboa, mas ela própria já tinha problemas de saúde e pouco espaço.
Uma tarde, ouvi Marta ao telefone na cozinha:
— Sim, mãe… Já lhe disse. Ela vai sair até ao fim do mês… Não aguento mais esta pressão! — fez uma pausa — O Pedro não percebe… Sinto-me sozinha nesta casa!
Fiquei parada à porta, sem saber se avançava ou recuava. Pela primeira vez vi a Marta não como inimiga, mas como alguém também à beira do colapso.
Na véspera de Ano Novo, sentei-me com o Pedro na sala.
— Filho… Eu não quero ser um peso para vocês. Mas custa-me ser tratada assim…
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Mãe… Eu só queria paz aqui em casa. A Marta sente-se sufocada… Eu também estou cansado de discussões.
— E eu? Achas que é fácil para mim? Perdi o teu pai, perdi a minha vida antiga… Agora querem tirar-me até o teto?
Ele baixou a cabeça.
— Desculpa, mãe.
No dia 6 de janeiro, comecei a empacotar as minhas coisas. Cada objeto era uma recordação: a chávena lascada do António, os desenhos dos netos colados no frigorífico… Chorei baixinho para ninguém ouvir.
Na noite antes de sair, Marta bateu à porta do meu quarto.
— Dona Judite… posso entrar?
Assenti em silêncio.
Ela sentou-se na ponta da cama, nervosa.
— Eu sei que fui dura consigo. Mas… eu também estou cansada. Sinto-me sozinha nesta casa cheia de gente. Tenho saudades da minha mãe… Sinto falta de ter alguém do meu lado.
Olhei-a nos olhos e vi ali uma mulher perdida, não uma vilã.
— Marta… Eu só queria sentir-me útil. Sentir que ainda faço parte desta família.
Ela começou a chorar.
— Desculpe… Eu não queria magoá-la assim. Só queria respirar um pouco…
Ficámos ali sentadas em silêncio durante minutos longos.
De repente ela tirou algo do bolso do casaco: uma pequena caixa embrulhada em papel dourado.
— Isto era para lhe dar no Natal… mas depois daquela noite não tive coragem.
Abri devagarinho: era um broche antigo com as iniciais da minha mãe gravadas — uma peça de família que eu pensava perdida há anos.
— Fui eu que encontrei quando arrumava as coisas do sótão… Achei que devia ser seu outra vez.
As lágrimas correram-me pelo rosto.
— Obrigada…
Nesse momento percebi que ambas estávamos magoadas e perdidas — cada uma à sua maneira.
No dia seguinte, antes de sair de casa com as malas feitas, Marta veio ter comigo à porta:
— Dona Judite… Se quiser ficar mais uns tempos até encontrar algo melhor… nós arranjamos maneira de nos entendermos.
Olhei para ela e depois para o Pedro e os netos à porta do quarto deles.
— Talvez possamos tentar outra vez… mas desta vez com mais conversa e menos silêncios — disse eu.
E assim ficou decidido: ia ficar mais uns meses enquanto procurava uma solução melhor para todos.
A vida não voltou ao que era antes — nunca volta — mas começámos a falar mais abertamente sobre o que sentíamos. A Marta deixou de me ver como um peso; eu deixei de a ver como inimiga. Os netos continuaram a pedir histórias e colo.
Agora olho para trás e penso: quantas famílias se destroem por falta de diálogo? Quantas vezes deixamos o orgulho falar mais alto do que o amor?
E vocês? Já sentiram que estavam prestes a perder tudo… só porque ninguém teve coragem de falar com o coração?