O Dia em que os Meus Filhos se Sentaram à Grande Ceia: Um Jantar que Mudou Tudo
— Mãe, não quero sentar-me ao lado do Diogo! — gritou a Inês, com os olhos cheios de lágrimas, enquanto eu tentava, pela terceira vez naquela noite, pôr ordem na mesa. O cheiro do bacalhau com natas misturava-se com a tensão no ar. O relógio da cozinha marcava 20h12, e eu sentia o peso de cada segundo a escorrer-me pelos ombros cansados.
A mesa estava posta com o melhor serviço — aquele que só usava no Natal ou quando a minha mãe vinha cá a casa. Mas hoje era diferente. Hoje era o dia em que, depois de meses de discussões e silêncios, eu ia tentar juntar os meus filhos à mesa para uma ceia como antigamente. O Pedro, o meu marido, estava sentado no canto, calado, a olhar para o telemóvel. O Diogo, com 16 anos e uma rebeldia que me fazia lembrar o meu próprio pai, bufava de impaciência.
— Inês, por favor — pedi, tentando manter a voz firme —, hoje é importante para mim. Só quero que estejamos juntos. Só hoje.
Ela cruzou os braços e olhou para mim como se eu fosse a culpada de todas as dores do mundo. O Diogo revirou os olhos e murmurou qualquer coisa sobre preferir estar com os amigos. O Pedro levantou-se, foi buscar uma cerveja ao frigorífico e voltou a sentar-se sem dizer palavra.
Senti uma lágrima quente escorrer-me pela face. Lembrei-me dos tempos em que os meus filhos eram pequenos e corriam pela casa, rindo-se das minhas tentativas desajeitadas de lhes ensinar canções infantis. Agora, cada um parecia viver numa ilha distante, separados por oceanos de mágoas pequenas e grandes.
— Sabem — comecei, a voz trémula —, quando eu era pequena, a avó fazia questão de nos juntar todos à mesa. Mesmo quando o avô estava zangado ou quando eu e a tia Sofia discutíamos por causa das bonecas. Ela dizia sempre: “À mesa resolve-se tudo”.
O Diogo olhou-me de lado. A Inês baixou os olhos para o prato vazio. O Pedro suspirou alto.
— Mãe, não é por estarmos todos juntos que as coisas mudam — disse o Diogo, seco.
— Talvez não — respondi —, mas é um começo.
O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado. Sentei-me e servi o bacalhau. As mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair a travessa. A Inês pegou no garfo com relutância. O Diogo mexeu no telemóvel por baixo da mesa.
De repente, o Pedro falou:
— Sabem… Eu também sinto falta dos tempos em que ríamos mais aqui em casa.
Foi como se alguém tivesse aberto uma janela e deixado entrar ar fresco. A Inês olhou para o pai com surpresa. O Diogo largou o telemóvel.
— Eu sei que tenho estado ausente — continuou o Pedro —, mas… às vezes não sei como voltar atrás.
As palavras dele ecoaram dentro de mim. Quantas vezes me senti assim? Quantas vezes desejei voltar atrás e fazer diferente?
— Não precisamos voltar atrás — disse eu, baixinho —, só precisamos tentar outra vez.
A Inês começou a chorar baixinho. O Diogo ficou muito quieto. Eu estendi a mão sobre a mesa e toquei na mão da minha filha. Ela apertou-a com força.
— Desculpa por ter gritado contigo hoje — sussurrou ela.
O Diogo olhou para mim e depois para a irmã.
— Também não tenho sido fácil — admitiu ele —. Mas… também sinto falta de quando éramos mais unidos.
O Pedro sorriu pela primeira vez em semanas. Serviu-se de bacalhau e passou o pão à Inês.
— Se calhar devíamos fazer isto mais vezes — disse ele.
A ceia continuou entre risos tímidos e histórias antigas. Falámos da escola da Inês, das notas do Diogo, das saudades que todos tínhamos da avó Maria. Pela primeira vez em muito tempo, senti-me em casa.
Quando terminámos de comer, ficámos à mesa a conversar até tarde. O Diogo contou uma piada parva que fez todos rir. A Inês mostrou-me desenhos que tinha feito escondida no caderno. O Pedro pegou na guitarra e tocou uma música antiga dos Xutos & Pontapés.
Naquela noite, depois de arrumar a cozinha sozinha (como sempre), sentei-me no sofá e olhei para as fotografias antigas na parede: os meus filhos pequenos, o Pedro mais novo, eu com um sorriso largo e despreocupado. Senti uma mistura de tristeza pelo tempo perdido e esperança pelo que ainda podia vir.
Afinal, talvez não seja preciso grandes gestos para mudar tudo. Às vezes basta um jantar, uma palavra sincera ou um pedido de desculpa para recomeçar.
Pergunto-me: quantas famílias vivem presas em silêncios e mágoas sem nunca se sentarem à mesma mesa? E se tentássemos mais vezes? Será assim tão difícil dar o primeiro passo?