Nunca Esperei Isto dos Meus Pais: Quando a Porta se Fecha na Própria Casa
— Não, mãe, por favor, não digas isso… — a minha voz tremia enquanto segurava a mala com as mãos suadas, sentindo o peso de cada palavra dita e não dita. O corredor da casa dos meus pais parecia mais estreito do que nunca, as paredes a apertarem-me como se quisessem expulsar-me dali também.
A minha mãe olhou-me nos olhos, mas não vi ali o calor de outros tempos. Vi apenas cansaço e uma espécie de resignação. — Mirela, tu escolheste o teu caminho. Agora tens de o trilhar. Não podes fugir sempre que as coisas correm mal com o Rui.
O meu pai, sentado à mesa da cozinha, nem sequer levantou os olhos do jornal. — Aqui em casa não há espaço para dramas — murmurou, como se eu fosse uma criança birrenta e não a filha que eles criaram com tanto sacrifício.
Senti o chão fugir-me dos pés. Tinha acabado de sair de casa do Rui depois de mais uma discussão — desta vez sobre dinheiro, sobre o tempo que ele passa no café, sobre a indiferença que cresce entre nós como uma erva daninha. Saí sem pensar, só queria ouvir a voz da minha mãe, sentir o cheiro do arroz doce que ela fazia quando eu estava triste. Mas em vez disso, encontrei uma porta fechada.
— Mãe, eu só preciso de ficar aqui esta noite. Amanhã logo vejo o que faço…
Ela abanou a cabeça, os olhos marejados mas firmes. — Não posso, filha. O teu pai não quer confusões. E tu sabes como ele é…
A raiva misturou-se com a vergonha. — Então é isso? Mandam-me de volta para ele? Acham que é fácil? Acham que eu não tentei tudo?
O silêncio foi a resposta. Saí dali com o coração aos pedaços, a mala a bater-me nas pernas como um lembrete cruel da minha solidão.
Caminhei pelas ruas de Setúbal sem destino certo. O vento frio cortava-me a cara e as lágrimas ardiam-me nos olhos. Lembrei-me de quando era miúda e caía da bicicleta: corria para casa, sabia que os meus pais iam limpar-me os joelhos e dar-me um abraço apertado. Agora, adulta, caída de outra maneira, não havia ninguém para me amparar.
Acabei por ligar à minha irmã mais nova, a Joana. Ela atendeu ao segundo toque:
— O que se passa? Estás a chorar?
— Preciso de um sítio para dormir…
— Vem cá para casa. O Tiago está a trabalhar até tarde, ficas comigo — disse ela sem hesitar.
Na casa da Joana senti um alívio momentâneo, mas também uma vergonha profunda. Ela preparou-me um chá e sentou-se ao meu lado no sofá.
— O Rui voltou a fazer das dele?
Assenti em silêncio. Joana suspirou.
— Os pais são assim porque têm medo, sabes? Medo do que vão dizer os vizinhos, medo de se meterem na tua vida… Mas tu não tens culpa disso.
— Tenho sim — rebati, com a voz embargada. — Fui eu que escolhi o Rui. Fui eu que insisti em casar cedo, quando toda a gente dizia para esperar…
Joana apertou-me a mão.
— Não tens culpa de ele ser assim. E não tens culpa de precisares de ajuda.
Naquela noite dormi pouco. Ouvia os carros lá fora, sentia o peso do fracasso a esmagar-me o peito. Pensei em tudo: nas discussões com o Rui — sempre as mesmas acusações, sempre o mesmo ciclo de promessas e desilusões; nos meus pais, tão rígidos nas suas convicções; em mim própria, perdida entre dois mundos que já não me pertenciam.
No dia seguinte acordei cedo e fui trabalhar como se nada fosse. No escritório ninguém percebeu nada — ou fingiram não perceber. A Susana perguntou se estava tudo bem e eu sorri, mentindo como tantas vezes antes.
À hora do almoço recebi uma mensagem do Rui: “Volta para casa. Vamos falar.” Hesitei durante horas antes de responder. Sabia que voltar era admitir derrota, mas ficar longe era ainda pior — não tinha para onde ir.
À noite voltei à casa onde já não me sentia em casa. O Rui estava sentado no sofá, olhar perdido na televisão desligada.
— Desculpa — disse ele sem me olhar nos olhos. — Não queria ter gritado contigo ontem.
Sentei-me ao lado dele, sem saber o que dizer. O silêncio entre nós era pesado, cheio de tudo o que nunca conseguimos dizer um ao outro.
— Os teus pais ligaram? — perguntou ele de repente.
Abanei a cabeça.
— Eles acham que eu devo ficar contigo. Que devo aguentar…
Ele suspirou e passou as mãos pelo rosto.
— Se calhar têm razão…
Olhei para ele e vi o mesmo cansaço que via em mim própria. Dois estranhos presos numa vida que já não fazia sentido.
Os dias passaram arrastados. Tentei falar com a minha mãe várias vezes, mas ela evitava conversas longas. O meu pai limitava-se a dizer “a vida é assim”. Senti-me cada vez mais sozinha.
Um domingo à tarde decidi ir visitá-los sem avisar. Levei um bolo feito por mim — como fazia quando era adolescente e queria agradar-lhes depois de uma asneira.
A minha mãe abriu a porta com surpresa.
— Vieste sozinha?
Assenti.
Sentámo-nos à mesa da cozinha em silêncio durante minutos intermináveis. Finalmente arrisquei:
— Mãe… porque é que me fechaste a porta aquela noite?
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Porque tenho medo por ti, Mirela. Porque sei como é difícil ser mulher nesta terra pequena onde toda a gente fala… E porque o teu pai nunca aceitou bem as tuas escolhas.
— Mas eu sou tua filha! — gritei quase sem querer. — Não devias proteger-me?
Ela chorou baixinho.
— Às vezes não sei como te ajudar sem te magoar ainda mais…
Saí dali ainda mais confusa do que entrei. Percebi que os meus pais também estavam perdidos nas suas próprias limitações e medos.
Hoje continuo casada com o Rui, mas cada vez mais distante dele e dos meus pais. Sinto-me presa numa vida feita de silêncios e portas fechadas — umas reais, outras invisíveis mas ainda mais dolorosas.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem assim, entre dois fogos? Quantas vezes fechamos portas aos outros por medo ou vergonha? Será possível recomeçar quando já ninguém parece querer abrir-nos a porta?