“Não tenho de sofrer por causa das dívidas dos teus pais” – Uma família portuguesa à beira do abismo
— Não posso acreditar que estás a pedir-me isto outra vez, Sofia! — gritou Rui, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pelo pequeno apartamento em Benfica, misturando-se com o cheiro do café frio e do pão amanhecido. Senti o peito apertar-se, como se cada palavra dele me empurrasse para um abismo sem fundo.
— Rui, por favor, é a minha mãe! O médico disse que ela precisa de começar o tratamento já na próxima semana. O meu pai está desesperado, não tem como pagar tudo sozinho… — tentei manter a voz firme, mas senti as lágrimas a ameaçarem cair.
Ele desviou o olhar, fitando a janela onde a chuva batia com força. — Sofia, já te disse: não vou meter o nosso dinheiro nos problemas dos teus pais. Não tenho de sofrer por causa das dívidas deles. — A frieza na voz dele era como uma faca. O Rui que eu conheci, o homem que me prometeu estar ao meu lado em todos os momentos, parecia ter desaparecido.
A minha cabeça rodopiava. Lembrei-me de quando éramos apenas namorados, de como ele me fazia rir, das noites em que sonhávamos juntos com uma casa cheia de filhos e domingos em família. Agora, tudo parecia tão distante, quase irreal.
O telefone vibrou na bancada. Era o meu pai. Hesitei antes de atender, mas sabia que não podia ignorar. — Pai?
Do outro lado, a voz dele tremia. — Sofia, a mãe piorou. O médico diz que temos de decidir rápido. Eu… eu não sei o que fazer. — Senti o desespero dele como se fosse meu.
Olhei para Rui, esperando algum sinal de compaixão, mas ele apenas se levantou e saiu da cozinha, deixando-me sozinha com o peso do mundo nos ombros.
Depois de desligar, sentei-me no chão da sala, abraçando as pernas. O silêncio era ensurdecedor. Lembrei-me de quando era criança, das tardes passadas na casa dos meus pais em Setúbal, do cheiro do arroz doce da minha mãe, das gargalhadas do meu pai. Eles sempre fizeram tudo por mim. Como podia agora virar-lhes as costas?
Naquela noite, quase não dormi. O Rui entrou tarde no quarto, cheirando a tabaco e cerveja. Fingiu que dormia quando me deitei ao lado dele. Senti-me invisível, como se já não fizesse parte da vida dele.
No dia seguinte, fui ao hospital sozinha. A minha mãe estava pálida, mas sorriu quando me viu. — Não te preocupes, filha. Vai correr tudo bem — disse ela, tentando esconder o medo nos olhos.
O meu pai estava sentado ao lado dela, com as mãos trémulas. — Sofia, eu sei que não é justo pedir-te isto… mas não temos mais ninguém.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não contra eles, mas contra o Rui, contra a vida, contra a injustiça de tudo aquilo. Como podia o amor ser tão frágil perante o dinheiro?
Quando voltei a casa, Rui estava no sofá a ver futebol. — Então? — perguntou sem tirar os olhos da televisão.
— Vou ajudar os meus pais — disse, sentindo uma força nova dentro de mim. — Vou pedir um empréstimo ao banco, mesmo que tenhamos de apertar o cinto.
Ele desligou a televisão e olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias. — Se fizeres isso, não contes comigo para nada. Já chega de seres sempre tu a resolver os problemas deles. E se ficarmos sem dinheiro? E se perdermos a casa?
— E se fosse a tua mãe? — perguntei, a voz a tremer de emoção. — O que farias tu?
Ele ficou em silêncio, mas vi nos olhos dele que não tinha resposta.
As semanas seguintes foram um inferno. O Rui mal falava comigo. Dormíamos em lados opostos da cama, como dois estranhos presos na mesma casa. Os meus amigos diziam-me para pensar em mim, para não sacrificar o meu casamento por causa dos meus pais. Mas como podia eu viver comigo mesma se não os ajudasse?
O banco aprovou o empréstimo, mas com juros altos. O dinheiro foi direto para o hospital. A minha mãe começou o tratamento, e pela primeira vez em meses vi um brilho de esperança nos olhos dela.
Mas em casa, tudo piorava. O Rui tornou-se cada vez mais distante, chegando tarde, saindo cedo. Uma noite, ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não aguento mais isto, Miguel. A Sofia só pensa nos pais dela. Parece que eu não existo. — A voz dele era amarga, cheia de ressentimento.
No dia seguinte, confrontei-o.
— Rui, se já não queres estar comigo, diz-me. Não suporto mais esta distância.
Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo.
— Eu amo-te, Sofia. Mas não posso viver sempre à sombra dos teus problemas familiares. Eu também tenho limites.
— E eu? Não tenho limites? Achas que é fácil para mim? — gritei, finalmente deixando sair toda a dor acumulada.
Ele não respondeu. Saiu de casa e só voltou de madrugada.
Os meses passaram. A minha mãe melhorou lentamente, mas o casamento estava em ruínas. Um dia, ao chegar a casa, encontrei Rui a fazer as malas.
— Vou para casa dos meus pais por uns tempos. Preciso de pensar.
Fiquei ali parada, sem saber o que dizer. Ele saiu sem olhar para trás.
Naquela noite, sentei-me sozinha na sala escura. O silêncio era agora um velho conhecido. Pensei em tudo o que tinha perdido e em tudo o que tinha ganho. Salvei a minha mãe, mas perdi o homem que amava. Ou talvez nunca o tenha realmente tido.
Hoje, meses depois, olho para trás e pergunto-me: será que fiz a escolha certa? Até onde devemos ir por amor à família? E quando é que o amor próprio deve falar mais alto? Talvez nunca haja respostas certas, mas sei que não podia ter feito de outra forma.
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por quem amam?