“Não sou tua criada!” – A frase que dividiu a minha família
“Não sou tua criada!” – as palavras ecoaram pela casa como um trovão, cortando o ar denso da manhã. Eu estava na cozinha, as mãos a tremerem enquanto segurava uma chávena de chá, o vapor a embaciar-me os óculos. Do outro lado da porta, a minha filha, Inês, gritava com uma raiva que eu nunca lhe tinha ouvido antes. O meu coração batia tão forte que quase não conseguia respirar.
– Inês, por favor, não fales assim comigo – tentei manter a voz calma, mas sentia-a a falhar-me.
Ela entrou na cozinha de rompante, os olhos vermelhos e o cabelo desgrenhado.
– Estou farta, mãe! Sempre a pedir-me para arrumar isto, limpar aquilo! Eu não sou tua criada!
Fiquei ali parada, sem saber o que dizer. O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da parede marcava sete e meia da manhã, mas parecia já ser noite dentro de mim. Oiço passos no corredor – o meu marido, António, aproxima-se, mas hesita à porta. Sinto-o dividido entre nós duas.
– O que se passa aqui? – pergunta ele, tentando soar neutro.
Inês vira-se para ele, lágrimas nos olhos.
– A mãe só sabe mandar! Nunca está satisfeita com nada do que faço!
António olha para mim, depois para ela. Sei que espera que eu resolva tudo, como sempre fiz. Mas desta vez não consigo. Sento-me à mesa e olho para as minhas mãos envelhecidas.
– Inês, eu só quero ajudar-te a seres responsável…
Ela interrompe-me:
– Não preciso que me ajudes! Preciso que me deixes em paz!
Sai da cozinha a correr. O som da porta do quarto a bater faz-me estremecer. António aproxima-se e pousa uma mão no meu ombro.
– Ela está numa fase difícil…
Mas eu sei que não é só isso. Há meses que sinto a distância a crescer entre nós. Desde que Inês entrou no secundário, parece que tudo o que faço a irrita. As tarefas de casa tornaram-se motivo de discussão diária. Sinto-me sozinha nesta luta para manter a família unida.
O dia passa arrastado. Tento concentrar-me no trabalho – sou professora primária numa escola aqui em Almada – mas as palavras dela não me saem da cabeça. “Não sou tua criada!” Quantas vezes já me senti assim eu própria? Quantas vezes desejei que alguém visse o meu esforço?
À noite, sentamo-nos à mesa para jantar. O silêncio é ensurdecedor. António tenta puxar conversa sobre futebol, mas ninguém responde. Inês mexe no prato sem comer.
– Inês, tens de comer – digo baixinho.
Ela empurra o prato e levanta-se.
– Não tenho fome.
António suspira. Eu sinto as lágrimas a quererem cair, mas engulo-as. Não quero mostrar fraqueza.
Depois do jantar, vou ao quarto dela. Bato à porta.
– Inês… posso entrar?
Ela não responde. Abro devagar. Está sentada na cama com o telemóvel na mão.
– Só queria falar contigo…
Ela olha para mim com olhos cansados.
– Para quê? Para dizeres outra vez que sou irresponsável?
Sento-me ao lado dela.
– Não foi isso que quis dizer… Só queria que percebessem que preciso de ajuda aqui em casa. Eu também trabalho o dia todo…
Ela desvia o olhar.
– Ninguém te pediu para fazeres tudo sozinha.
Fico sem palavras. Sinto-me invisível na minha própria casa.
Os dias seguintes são iguais: silêncios, portas fechadas, olhares fugidios. António começa a chegar mais tarde do trabalho. Diz que tem reuniões, mas sei que é para evitar o ambiente pesado em casa.
Uma noite, ouço Inês a chorar no quarto. Hesito antes de bater à porta.
– Inês…
Ela não responde. Entro e vejo-a encolhida na cama.
– O que se passa?
Ela limpa as lágrimas com as costas da mão.
– Nada… Só estou cansada.
Sento-me ao lado dela e passo-lhe a mão pelo cabelo como fazia quando era pequena.
– Desculpa se te magoei… Não era minha intenção.
Ela olha para mim finalmente.
– Eu também não devia ter gritado contigo… Só estou tão stressada com os testes, os amigos… Sinto-me sempre pressionada para ser perfeita.
Abraçamo-nos em silêncio. Sinto o peso dos dias maus a dissolver-se um pouco.
Mas as coisas não voltam ao normal de um dia para o outro. António continua distante. Uma noite, depois de Inês se deitar, ele senta-se comigo na sala.
– Achas que estamos a falhar como pais?
Olho para ele surpresa.
– Não sei… Talvez estejamos todos demasiado cansados para ver o que cada um sente.
Ele pega na minha mão.
– Lembras-te de quando ela era pequena? Tudo era mais simples…
Sorrio tristemente.
– Agora parece impossível falar sem discutir.
Decidimos procurar ajuda – marcamos uma consulta familiar no centro de saúde local. A psicóloga chama-se Dra. Teresa e recebe-nos com um sorriso caloroso. Inês cruza os braços desconfiada, mas acaba por falar sobre a pressão que sente na escola e em casa. António admite que tem fugido dos problemas porque não sabe lidar com eles. Eu confesso o medo de perder a família que tanto lutei para construir.
As sessões não resolvem tudo de imediato, mas ajudam-nos a perceber que todos temos limites e necessidades diferentes. Aprendemos a comunicar melhor – ou pelo menos tentamos.
Um domingo à tarde, estamos todos na cozinha a preparar o almoço juntos pela primeira vez em meses. Inês corta legumes enquanto António põe a mesa. Olho para eles e sinto uma esperança tímida a nascer dentro de mim.
No entanto, sei que basta uma palavra mal dita para tudo voltar atrás. A ferida ainda está aberta – talvez nunca feche completamente.
Às vezes dou por mim a pensar: como é possível amar tanto alguém e ao mesmo tempo magoá-lo tanto? Será que alguma vez vamos conseguir perdoar-nos uns aos outros por aquilo que dissemos em momentos de dor?