“Não quero que venhas ao meu casamento”: Quando ouvi estas palavras da minha filha, o mundo parou

— Não quero que venhas ao meu casamento.

As palavras da Mariana ecoaram na minha cabeça como um trovão inesperado numa tarde de verão. Fiquei ali, parada na cozinha, com a chávena de chá a tremer-me nas mãos. O cheiro do limão misturava-se com o sabor amargo da rejeição. Olhei para ela, esperando que fosse uma brincadeira, uma provocação passageira. Mas os olhos dela estavam frios, distantes, como se eu fosse uma estranha.

— Mariana… porquê? — perguntei, quase num sussurro, sentindo o nó apertar-se-me na garganta.

Ela desviou o olhar para o chão, mexendo nervosamente no telemóvel.

— Mãe, simplesmente… não quero confusões. Tu e o pai… vocês nunca conseguem estar juntos sem discutir. E eu não quero isso no meu dia.

Senti o sangue fugir-me do rosto. O pai dela, o António, estava ausente da nossa vida há anos, mas sempre que aparecia era como se um furacão atravessasse a casa. As discussões, os gritos, as acusações… tudo isso tinha deixado marcas profundas em nós as duas. Mas eu nunca pensei que ela me afastasse assim.

— Mariana, eu sou tua mãe! — tentei argumentar, mas a voz saiu-me trémula. — Sempre estive aqui por ti…

Ela encolheu os ombros.

— Estiveste… mas também estiveste sempre contra ele. E eu não quero escolher lados. Não neste dia.

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Lembrei-me de quando ela era pequena e corria para os meus braços depois de cada pesadelo. Lembrei-me das noites em claro quando ela teve febre, dos trabalhos de casa feitos à pressa antes do jantar, das festas de aniversário improvisadas porque o dinheiro nunca chegava para tudo.

— Mariana… — tentei mais uma vez, mas ela já estava a sair da cozinha, deixando-me sozinha com a minha dor.

Fiquei ali durante horas, incapaz de me mexer. O relógio da parede marcava cada segundo como uma sentença. O telefone tocou várias vezes — a minha irmã Ana, a vizinha D. Emília — mas não atendi ninguém. Senti-me vazia, traída por tudo aquilo que tinha dado à minha filha.

Naquela noite, não consegui dormir. Ouvia os passos dela no corredor, ouvia-a falar baixinho ao telefone com alguém — talvez com o pai? Talvez com o noivo? Não sabia. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: raiva do António por ter destruído a nossa família; raiva de mim própria por não ter conseguido proteger a Mariana de tudo aquilo; raiva da própria Mariana por me afastar agora, quando mais precisava dela.

No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os meus colegas do centro de saúde notaram logo que algo não estava bem.

— Está tudo bem, Teresa? — perguntou a Carla, a enfermeira-chefe.

Sorri-lhe sem vontade.

— São coisas de família…

Ela assentiu com um olhar compreensivo. Todos ali sabiam das minhas lutas: o divórcio difícil, as noites passadas sozinha depois que o António foi embora, as dificuldades em criar uma filha adolescente num bairro onde todos sabiam tudo sobre todos.

Ao fim do dia, sentei-me no banco do jardim em frente ao centro de saúde e deixei-me ficar ali até o sol desaparecer atrás dos prédios. Lembrei-me da última vez que eu e o António estivemos juntos na mesma sala: foi no Natal passado, quando Mariana insistiu em juntar-nos para um jantar “de família”. Acabou em gritos e lágrimas — ele acusou-me de manipular a filha contra ele; eu acusei-o de ser um pai ausente e irresponsável. Mariana saiu da sala a chorar e eu fiquei ali, sozinha com os restos do bacalhau e da mágoa.

Quando cheguei a casa nessa noite, encontrei um envelope em cima da mesa da cozinha. Era uma carta da Mariana:

“Mãe,

Sei que isto te magoa. Mas preciso deste espaço para mim. Não quero mais discussões nem ressentimentos no meu casamento. Quero começar uma nova vida sem carregar os fantasmas do passado. Espero que um dia consigas perdoar-me.

Amo-te,
Mariana”

As lágrimas caíram-me pelo rosto sem controlo. Como é que chegámos aqui? Como é que uma mãe e uma filha se afastam tanto ao ponto de não conseguirem partilhar o dia mais importante das suas vidas?

Durante dias vivi num torpor. A Ana veio cá a casa tentar animar-me.

— Teresa, tens de falar com ela! Não podes deixar isto assim!

— Ela não quer falar comigo — respondi-lhe, exausta. — Já tentei tudo.

— E vais desistir? Vais deixar que ela te apague da vida dela?

Não respondi. No fundo sentia-me culpada: talvez tivesse sido demasiado dura com o António; talvez tivesse exigido demais da Mariana; talvez tivesse esperado dela aquilo que eu própria nunca consegui ser — perfeita.

Uma semana antes do casamento, recebi uma mensagem inesperada do António:

“Podemos falar?”

O meu primeiro impulso foi ignorá-lo. Mas algo dentro de mim — talvez o desespero — fez-me responder:

“Amanhã às 18h no café do costume.”

Quando cheguei lá, ele já estava sentado à mesa do canto, com ar envelhecido e cansado. Olhou para mim com aqueles olhos castanhos que um dia me fizeram apaixonar.

— Teresa…

— António…

Ficámos em silêncio durante uns segundos intermináveis.

— A Mariana falou comigo — começou ele. — Está magoada contigo… mas também comigo. Acho que nenhum de nós percebeu o quanto lhe fizemos mal.

Senti as lágrimas ameaçarem cair outra vez.

— Eu só queria protegê-la…

Ele assentiu.

— Eu também. Mas acabámos por afastá-la dos dois.

Ficámos ali a falar durante horas: sobre os erros do passado, sobre as noites em claro por causa das dívidas dele ao jogo, sobre as vezes em que eu gritei demais ou fechei portas quando devia ter aberto janelas. Pela primeira vez em muitos anos senti que estávamos finalmente a ser honestos um com o outro.

No final, ele disse:

— Talvez devêssemos escrever-lhe juntos. Mostrar-lhe que conseguimos estar juntos sem discutir.

Foi isso que fizemos: escrevemos uma carta à Mariana, pedindo desculpa por tudo e prometendo tentar ser melhores pais dali para a frente — mesmo que já fosse tarde demais para sermos família como antes.

No dia do casamento fiquei em casa sozinha. Ouvi os foguetes ao longe e imaginei-a vestida de branco, linda como sempre foi desde bebé. A Ana ligou-me várias vezes para saber se precisava de companhia; recusei todas as ofertas. Queria ficar sozinha com as minhas memórias e com a esperança ténue de que um dia ela voltasse para mim.

Dias depois recebi uma mensagem curta:

“Obrigada pela carta. Preciso de tempo. Amo-te.”

Guardei aquela mensagem como um tesouro frágil.

Hoje continuo à espera desse tempo dela — e talvez também do meu próprio tempo para perdoar e ser perdoada.

Será que alguma vez conseguimos realmente libertar-nos dos erros do passado? Ou estamos condenados a repeti-los com aqueles que mais amamos?