Mãe, porque nunca me abraçaste?
— Mãe, porque nunca me abraçaste?
O som da chaleira a ferver quase abafou a pergunta, mas não o suficiente. Fiquei ali, de costas para a mesa da cozinha, com as mãos trémulas a segurar na pega do bule. O cheiro da maçã e da canela da tarte que acabara de sair do forno misturava-se com o aroma do chá verde. A minha filha, a Ana, sentada à mesa, olhava-me com uma serenidade que me desarmou. Não havia mágoa na voz dela, só uma curiosidade dolorosa, como quem tenta resolver um enigma antigo.
Senti o coração apertar-se no peito. Tantos anos a evitar aquela pergunta, tantos anos a fingir que não havia nada de errado entre nós. E agora, ali, aos sessenta e dois anos, com a minha filha já com trinta e cinco e mãe de dois meninos, era confrontada com tudo aquilo que nunca fui capaz de dizer.
— Ana… — comecei, mas a voz falhou-me. Sentei-me à frente dela, tentando não desviar o olhar. — Não sei se consigo responder-te.
Ela sorriu levemente, um sorriso triste. — Não faz mal, mãe. Só queria saber se era por minha causa.
Aquela frase caiu sobre mim como uma pedra. Como podia ela pensar isso? Como podia alguma vez imaginar que era por causa dela? Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. Não era altura para fraquezas.
— Não… nunca foi por tua causa. — Disse finalmente, com a voz embargada. — Eu… eu simplesmente não sabia como.
O silêncio instalou-se entre nós. O relógio da parede marcava cada segundo como se fosse uma sentença. Lembrei-me da minha própria mãe, a avó da Ana, uma mulher dura, de poucas palavras e menos ainda de gestos de carinho. Cresci numa casa onde os abraços eram raros como dias de neve em Lisboa. O meu pai morreu cedo, e a minha mãe ficou sozinha com três filhos para criar. O trabalho no mercado, as contas para pagar, as noites mal dormidas… tudo isso a transformou numa fortaleza gelada.
Lembro-me de uma vez, devia ter uns oito anos, caí e esfolei o joelho. Fui a correr para casa, a chorar, e a minha mãe limitou-se a dizer: “Lava isso na torneira e vai brincar.” Nunca um colo, nunca um beijo na testa. Cresci assim: a aprender que carinho era fraqueza e que o mundo não tinha tempo para sentimentalismos.
— Quando tu nasceste — continuei, olhando para as minhas mãos enrugadas — eu prometi a mim mesma que ia ser diferente. Que ia dar-te tudo o que não tive. Mas depois… depois veio o trabalho, as preocupações… o teu pai…
A Ana baixou os olhos. Sabia bem do que falava. O meu marido, o António, era um homem bom mas ausente. Trabalhava horas intermináveis nos barcos do Tejo e quando chegava a casa estava exausto ou maldisposto. Muitas vezes discutíamos por coisas pequenas: o dinheiro que nunca chegava, as notas da Ana na escola, as tarefas domésticas.
— Lembras-te daquela vez em que partiste o vaso da sala? — perguntei-lhe de repente.
Ela sorriu de lado. — Lembro. Achei que ias matar-me.
— Não matei — tentei brincar, mas a verdade é que gritei contigo como se tivesses cometido um crime horrível. Depois fechei-me no quarto a chorar em silêncio. Nunca te pedi desculpa por isso.
A Ana pousou a mão sobre a minha. Foi um gesto pequeno mas tão grande para mim. Senti um calor estranho subir-me pelo braço.
— Mãe… eu só queria perceber — disse ela suavemente. — Sempre achei que havia algo de errado comigo. Via as mães das minhas amigas abraçarem-nas à porta da escola e perguntava-me porque tu nunca fazias o mesmo.
As lágrimas caíram-me finalmente pela cara abaixo. Tantos anos de silêncio, de orgulho estúpido… E agora percebia o preço que ambas pagámos por isso.
— Não era por ti — repeti entre soluços. — Era por mim. Eu tinha medo… medo de não saber como se fazia. Medo de parecer fraca. Medo de te magoar sem querer.
Ela apertou-me a mão com mais força.
— Mas magoaste — disse baixinho.
Aquelas palavras doeram mais do que qualquer bofetada. Era verdade. Magoara-a sem querer, por não saber ser diferente daquilo que me ensinaram.
— Eu sei — sussurrei. — E lamento tanto…
Ficámos assim durante alguns minutos, em silêncio, cada uma perdida nos seus pensamentos. O sol entrava pela janela da cozinha e fazia dançar poeiras douradas no ar.
De repente ouvi passos pequenos no corredor: eram os meus netos, o Tomás e o Miguel, a correrem atrás um do outro com os carrinhos de brincar.
— Vó! — gritou o Tomás ao entrar na cozinha. — Podes vir brincar connosco?
Olhei para a Ana e ela assentiu com um sorriso encorajador.
Levantei-me devagar e ajoelhei-me ao lado dos meninos no chão da sala. Eles riram-se quando lhes fiz cócegas e puxaram-me para o meio dos brinquedos. Pela primeira vez em muitos anos senti uma leveza no peito, como se uma parte do peso tivesse finalmente desaparecido.
Mais tarde, quando os meninos já dormiam e a Ana se preparava para ir embora, abracei-a pela primeira vez desde que era criança. Foi um abraço tímido, desajeitado até, mas cheio de tudo aquilo que nunca fui capaz de lhe dar antes.
Ela chorou no meu ombro e eu chorei com ela.
Agora pergunto-me: quantas mães e filhas vivem presas neste silêncio? Quantas vezes deixamos o medo ou o orgulho roubar-nos gestos simples? Será possível recuperar o tempo perdido? Gostava tanto de saber o que vocês pensam…