“Mãe, não venhas cá sem avisar”: A dor de uma mãe portuguesa que sempre se sacrificou pelo filho
— Mãe, por favor, não venhas cá sem avisar. — As palavras do Miguel ecoaram no corredor do prédio, frias e cortantes como o vento de janeiro. Fiquei parada à porta, com o saco das compras ainda na mão, sentindo o chão fugir-me dos pés. O cheiro do arroz de pato que eu tinha feito de propósito para ele misturava-se com o perfume do detergente barato do prédio. Olhei para o Miguel, o meu filho, e vi um estranho.
Durante anos, fui tudo para ele. Lembro-me da primeira vez que o vi, enrolado numa manta azul no Hospital de Santa Maria. O médico disse: “É um rapaz forte!” E eu chorei de alegria. Desde então, tudo na minha vida girou à volta dele. O António, o meu marido, sempre dizia que eu era demasiado protetora. “Deixa o miúdo respirar, Maria!” Mas como podia? Quando ele tinha febre, eu passava noites em claro. Quando partiu o braço a jogar à bola, fui eu quem ficou sentada ao lado dele no hospital, a segurar-lhe a mão.
O António morreu cedo demais. O Miguel tinha 14 anos. Fiquei sozinha com ele e com as contas para pagar. Trabalhava como empregada de limpeza na escola primária do bairro. Nunca me importei com o cansaço ou com as dores nas costas. O importante era que ao Miguel não faltasse nada. Quando ele quis estudar Engenharia em Lisboa, vendi as poucas jóias que a minha mãe me deixou para pagar-lhe o quarto. Nunca reclamei.
— Mãe, tens de perceber que agora tenho a minha vida — repetiu ele, desviando o olhar.
— Eu só queria trazer-te o jantar… — tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula.
— Eu agradeço, mas não podes aparecer assim sem avisar. Tenho coisas combinadas…
Vi uma sombra passar-lhe pelo rosto. Atrás dele ouvi risos abafados — devia estar lá a namorada nova ou talvez os amigos da faculdade. Senti-me velha e deslocada.
Naquela noite, voltei para casa sozinha. O apartamento parecia maior e mais frio do que nunca. Sentei-me na cozinha e olhei para a fotografia do Miguel em pequeno: bochechas rosadas, sorriso aberto, olhos brilhantes de esperança. Onde estava esse menino? Onde estava aquela ligação que pensei ser inquebrável?
No dia seguinte, a minha irmã Rosa ligou-me.
— Maria, tens de te distrair! Anda comigo ao bingo logo à noite.
— Não me apetece, Rosa…
— Não podes viver só para o Miguel! Ele já é homem feito.
Mas como se deixa de ser mãe? Como se desliga esse interruptor?
Os dias passaram lentos. O telefone tocava cada vez menos. O Miguel mandava mensagens curtas: “Está tudo bem”, “Não posso falar agora”, “Depois ligo”. Nunca ligava.
No Natal desse ano, preparei tudo como sempre: bacalhau com todos, rabanadas, sonhos e arroz doce com canela em forma de coração. Esperei por ele até às nove da noite. Quando finalmente chegou, vinha apressado.
— Desculpa, mãe, mas só posso ficar meia hora. A Marta convidou-me para jantar com os pais dela…
Senti uma pontada no peito. Sorri para não chorar.
— Vai lá, filho… diverte-te.
Depois do Natal, comecei a ir ao centro de dia do bairro. Lá conheci a Dona Emília e o Sr. Joaquim. Jogávamos cartas e falávamos dos filhos — todos eles distantes, ocupados com as suas vidas. Havia uma tristeza partilhada nos nossos olhares.
Um dia, a Marta — namorada do Miguel — ligou-me.
— Dona Maria? O Miguel está muito cansado… Tem trabalhado demais.
— Ele nunca me diz nada…
— Ele não quer preocupar a senhora.
Percebi então que o Miguel também carregava fardos que eu não via. Talvez eu tivesse sido demasiado presente, demasiado sufocante. Talvez ele precisasse de espaço para crescer sem sentir o peso da minha preocupação constante.
Na Páscoa seguinte, decidi não preparar nada especial. Fui visitar a Rosa e deixei o telemóvel em silêncio. Quando voltei a casa à noite, encontrei uma mensagem do Miguel: “Mãe, onde estás? Passei aí e não estavas.”
Sorri pela primeira vez em meses.
No verão, aceitei ir com as amigas do centro de dia até à Nazaré. Senti o cheiro do mar e ri como há muito não fazia. Quando regressei, encontrei o Miguel à porta de casa.
— Mãe… — disse ele, hesitante — Podemos jantar juntos?
Sentámo-nos à mesa e falámos como há muito não fazíamos. Ele contou-me das dificuldades no trabalho, das dúvidas sobre o futuro com a Marta.
— Às vezes sinto falta de quando era pequeno… — confessou ele baixinho.
— Eu também sinto falta desse tempo — respondi — Mas temos de aprender a viver este novo tempo.
Abraçámo-nos longamente. Percebi que ser mãe não é estar sempre presente fisicamente; é saber dar espaço quando é preciso e estar lá quando somos chamados.
Agora olho para trás e penso: será que fiz bem em dedicar-me tanto? Será que devia ter pensado mais em mim? Ou será que o amor de mãe é mesmo assim — feito de entrega total e de uma solidão silenciosa?
E vocês? Também sentem que às vezes amar é saber deixar ir?