“Lembras-te de mim só quando precisas de alguém para ficar com a tua filha?”: A história de uma mãe portuguesa

— Mãe, podes ficar com a Zoé amanhã? — A voz do Miguel chegou-me pelo telefone, seca, apressada, como quem pede um favor a uma vizinha e não à própria mãe.

Olhei para o relógio. Era quase meia-noite e a chuva batia forte nas janelas do meu pequeno apartamento em Almada. Oiço o som da televisão ao fundo, mas nem me lembro do que estava a dar. O coração apertou-se-me no peito. Não me lembro da última vez que o Miguel me ligou só para saber como eu estava.

— Claro, filho. — Respondi, tentando esconder a mágoa na voz. — A que horas trazes a menina?

— Passo aí às oito. Obrigado, mãe. — E desligou antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa.

Fiquei ali sentada, com o telefone na mão, a olhar para o vazio. Lembrei-me de quando o Miguel era pequeno e vinha a correr para os meus braços depois de um pesadelo. Agora, só se lembra de mim quando precisa de alguém para tomar conta da filha. Senti uma lágrima escorrer-me pela face. Não era justo.

A noite passou devagar. Oiço o vento lá fora e penso em tudo o que se perdeu entre nós. O divórcio com o pai do Miguel foi há mais de dez anos, mas ainda sinto as feridas abertas. Ele ficou com o pai durante a adolescência, porque eu trabalhava por turnos no hospital e não podia garantir-lhe estabilidade. Sempre achei que um dia ele ia perceber os sacrifícios que fiz por ele. Mas agora, parece que sou apenas uma solução prática para os problemas dele.

Na manhã seguinte, mal tive tempo de tomar o pequeno-almoço quando ouvi a campainha. Abri a porta e lá estava o Miguel, com Zoé pela mão. Ela sorriu ao ver-me e correu para me abraçar.

— Olá, avó! — gritou ela, com aquela alegria pura das crianças.

O Miguel mal olhou para mim.

— Tenho de ir, mãe. Depois venho buscá-la ao fim do dia.

— Está tudo bem contigo? — arrisquei perguntar.

Ele encolheu os ombros.

— Trabalho, mãe. Sempre trabalho.

E foi-se embora sem mais uma palavra.

Fechei a porta devagar e sentei-me no sofá com a Zoé ao colo. Ela começou logo a mostrar-me os desenhos novos que tinha feito na escola.

— O papá diz que sou artista! — disse ela, orgulhosa.

Sorri-lhe, mas por dentro sentia-me vazia. Porque é que tudo tinha de ser assim? Porque é que o Miguel não conseguia falar comigo como antes? Será que ele me culpa por ter escolhido trabalhar tanto? Por não ter estado presente em todos os momentos?

Ao longo do dia, tentei distrair-me com as brincadeiras da Zoé. Fomos ao parque, fizemos bolos, pintámos desenhos. Ela ria-se tanto que por momentos esqueci as mágoas. Mas bastava um segundo de silêncio para tudo voltar à superfície.

Quando o Miguel voltou para buscar a filha já era noite. Esperei que ele dissesse qualquer coisa, mas limitou-se a agradecer e a pegar na Zoé pela mão.

— Miguel… — chamei antes que ele saísse.

Ele parou à porta, impaciente.

— O que foi, mãe?

— Sentes-te bem? Não queres jantar connosco?

Ele suspirou.

— Não posso, tenho coisas para fazer.

— Miguel… — insisti, sentindo as lágrimas ameaçarem cair outra vez. — Sinto a tua falta. Sinto falta de falarmos como antes.

Ele olhou-me finalmente nos olhos, mas havia uma frieza ali que me magoou mais do que qualquer palavra.

— Mãe… A vida mudou. Eu tenho as minhas responsabilidades agora. Não tenho tempo para conversas.

E saiu sem olhar para trás.

Fechei a porta e encostei-me à madeira fria. Senti-me tão sozinha como nunca antes na vida. O silêncio da casa parecia gritar comigo: “Foste tu que escolheste isto”.

Nos dias seguintes tentei ligar-lhe várias vezes, mas ele nunca atendia ou respondia apenas com mensagens curtas: “Estou ocupado” ou “Depois falo”. Comecei a pensar em tudo o que tinha feito desde o divórcio: as noites em claro no hospital, as festas de anos que perdi, as reuniões da escola onde nunca consegui estar presente. Será que ele nunca me perdoou?

Uma tarde, decidi ir até à casa dele em Setúbal sem avisar. Levei um bolo caseiro e um saco com brinquedos para a Zoé. Quando cheguei, ouvi vozes dentro de casa: era ele e a ex-mulher dele, a Marta, discutindo alto demais para quem tem uma filha pequena em casa.

— Não podes continuar a deixar a Zoé com a tua mãe sempre que te apetece! — gritava Marta.

— E tu queres que faça o quê? Preciso de trabalhar! — respondeu o Miguel, exasperado.

— Ela não é tua empregada! — insistiu Marta.

Senti-me gelar por dentro. Era assim que eles falavam de mim? Como se eu fosse apenas uma empregada disponível?

Bati à porta e eles calaram-se subitamente. O Miguel abriu e ficou surpreendido ao ver-me ali.

— Mãe… O que fazes aqui?

— Vim trazer um bolo para vocês… e uns brinquedos para a Zoé — disse, tentando sorrir apesar da tensão no ar.

A Marta olhou para mim com um misto de pena e irritação.

— Obrigada, dona Helena… Mas não precisava de se incomodar.

A Zoé apareceu atrás deles e correu para mim:

— Avó! Ficas hoje connosco?

Olhei para o Miguel à espera de uma resposta. Ele encolheu os ombros.

— Se quiseres…

Jantámos juntos naquela noite pela primeira vez em anos. Mas o ambiente estava pesado; cada palavra parecia escolhida a dedo para evitar discussões maiores. A Marta saiu cedo dizendo que tinha compromissos e deixou-nos sozinhos na sala.

O Miguel ficou calado durante muito tempo até finalmente dizer:

— Mãe… Desculpa se tenho sido distante. Mas às vezes sinto que não posso contar contigo como antes…

Fiquei sem saber o que responder. Como assim? Eu sempre estive lá quando ele precisou!

— Porque dizes isso?

Ele suspirou fundo:

— Quando era miúdo… sentia sempre que estavas cansada demais para mim. Que o hospital era mais importante… E agora… agora só consigo pedir-te ajuda quando já não tenho outra solução.

As palavras dele caíram sobre mim como pedras. Tentei explicar:

— Eu fiz tudo por ti, Miguel… Trabalhei tanto porque queria dar-te uma vida melhor…

Ele abanou a cabeça:

— Eu sei… Mas às vezes só queria ter tido uma mãe presente… Não uma heroína cansada.

Ficámos em silêncio durante muito tempo. A Zoé adormeceu no sofá ao meu lado e eu acariciei-lhe o cabelo loiro como fazia ao Miguel quando era pequeno.

Naquela noite voltei para casa sozinha outra vez. Mas algo tinha mudado dentro de mim: percebi finalmente que nem sempre basta amar muito alguém; é preciso saber mostrar esse amor nos momentos certos.

Desde então tento estar mais presente na vida do Miguel e da Zoé — não apenas como solução prática, mas como mãe e avó verdadeira. Às vezes ainda sinto aquela distância entre nós, mas pelo menos agora falamos sobre isso sem medo ou vergonha.

Pergunto-me muitas vezes: será possível recuperar o tempo perdido? Ou há feridas na família que nunca chegam verdadeiramente a sarar?