“Filha, Vim Viver Contigo. Pela Lei, Tens de Me Aceitar” – A História Que Rasgou o Meu Coração e o Meu Lar
— Filha, vim viver contigo. Pela lei, tens de me aceitar.
As palavras do meu pai ecoaram no corredor estreito do meu apartamento em Almada, como um trovão num céu limpo. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o perfume barato que ele sempre usou, e eu fiquei ali, de pijama, a olhar para aquele homem que não via há mais de vinte anos. O meu coração batia tão forte que temi que ele ouvisse.
— O quê? — perguntei, a voz a tremer entre incredulidade e raiva. — Pai… Tu…
Ele pousou a mala gasta no chão, olhou-me nos olhos e disse, sem hesitar:
— A tua mãe morreu. Não tenho para onde ir. E sabes que, pela lei, tens de me acolher. És minha filha.
Senti o chão fugir-me dos pés. A minha mãe tinha morrido há três meses — um cancro rápido e cruel — e eu ainda não tinha conseguido arrumar as roupas dela do armário. Agora, o homem que nos abandonou quando eu tinha dez anos aparecia à minha porta, como se nada fosse.
— Não podes simplesmente aparecer assim! — gritei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Onde estiveste todos estes anos? Sabes sequer o que passei?
Ele encolheu os ombros, como quem pede desculpa por um atraso banal.
— A vida não foi fácil para mim também, filha. Mas agora preciso de ti.
Fechei os olhos por um segundo. Lembrei-me das noites em que a minha mãe chorava baixinho na cozinha, das vezes em que tive de faltar à escola para tomar conta dela quando estava doente. Lembrei-me do Natal em que prometi a mim mesma nunca mais esperar por ninguém.
— Não sei se consigo — murmurei. — Não sei se quero.
Ele entrou mesmo assim. Sentou-se no sofá como se fosse dele, olhou em volta e sorriu tristemente.
— Tens uma casa bonita. Melhor do que alguma vez tive.
A raiva cresceu dentro de mim como uma onda prestes a rebentar. Quis gritar-lhe tudo o que me ia na alma: que nunca me ligou nos meus aniversários, que nunca viu os meus diplomas, que nunca conheceu o meu namorado, o Rui, com quem vivo há quatro anos.
O Rui chegou meia hora depois. Encontrou-nos sentados em silêncio na sala. Olhou para mim, depois para o homem no sofá.
— Quem é este? — perguntou baixinho.
— O meu pai — respondi, sem conseguir esconder o sarcasmo.
O Rui percebeu logo o peso da situação. Sentou-se ao meu lado e apertou-me a mão.
— O que é que vais fazer?
Não sabia responder. A lei portuguesa diz que os filhos têm deveres para com os pais idosos e sem recursos. Mas e o dever dele para comigo? E as feridas que nunca sararam?
Naquela noite quase não dormi. O meu pai roncava no sofá da sala, como se estivesse em casa desde sempre. Eu olhava para o teto e pensava na minha infância: nos dias em que esperei por ele à janela, nas promessas quebradas, nas cartas nunca enviadas.
No dia seguinte, liguei à minha irmã mais nova, a Joana. Ela vive no Porto e raramente falamos desde a morte da mãe.
— O pai apareceu aqui — disse-lhe, sem rodeios.
Do outro lado da linha, silêncio.
— E agora? — perguntou ela finalmente.
— Diz que tenho de o acolher por lei…
A Joana suspirou.
— Ele também me ligou há uns dias. Disse-lhe que não podia. Tenho três filhos pequenos e mal chego ao fim do mês…
Senti-me sozinha como nunca antes. A responsabilidade caía toda sobre mim.
Durante os dias seguintes, tentei manter a rotina: trabalho no hospital das oito às seis, compras ao sábado, jantar com o Rui ao domingo. Mas tudo estava diferente. O meu pai ocupava a casa com a sua presença pesada: deixava migalhas na mesa, reclamava da comida (“Na minha terra é que se comia bem!”), criticava o Rui (“Esse rapaz não sabe apertar um parafuso!”).
Uma noite, depois do jantar, explodi:
— Porque é que vieste mesmo? Não tens amigos? Não tens ninguém?
Ele olhou-me com uma tristeza antiga nos olhos.
— Não tenho ninguém, filha. Só tu.
As palavras ficaram a pairar entre nós como uma sentença. Senti pena dele — mas também raiva por me fazer sentir assim.
O Rui começou a afastar-se. Passava mais tempo fora de casa, dizia que precisava de espaço. Uma noite discutimos:
— Não aguento mais isto! — gritou ele. — A tua casa já não é tua! Nem nossa!
Chorei sozinha na casa de banho até não ter mais lágrimas para dar.
O meu pai adoeceu pouco tempo depois: uma pneumonia forte levou-o ao hospital onde trabalho. Fui visitá-lo todos os dias, mesmo sem saber se era por obrigação ou por amor esquecido.
Uma tarde encontrei-o sentado na cama do hospital, a olhar pela janela para o Tejo.
— Sabes — disse ele — nunca fui bom pai. Mas gostava de tentar ser bom avô… se algum dia me deixares.
Não respondi. Senti apenas um nó na garganta e uma vontade imensa de fugir dali.
Quando voltou para casa, já mais fraco, tentei perdoá-lo aos poucos: fiz-lhe sopa como fazia à minha mãe, sentei-me ao lado dele a ver novelas antigas na RTP Memória. Mas nunca consegui esquecer tudo o que ficou por dizer.
Um dia recebi uma carta da Joana:
“Desculpa não estar aí contigo. Sei que é difícil. Talvez um dia consigamos perdoar o pai… ou pelo menos perdoar-nos por não conseguirmos.”
Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e chorei baixinho nessa noite.
O meu pai morreu dois meses depois, numa manhã fria de novembro. Fui eu quem tratou do funeral — simples, sem flores caras nem discursos bonitos. No cemitério de Almada éramos só eu, a Joana e um vizinho idoso que mal conhecia o meu pai.
Quando voltei para casa nesse dia, sentei-me no sofá onde ele costumava dormir e fiquei ali horas a fio. O Rui voltou nessa noite; abraçou-me em silêncio e ficámos assim até adormecer.
Agora olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria conseguido perdoar mais cedo? Ou há feridas que nunca saram realmente?
E vocês? Acham mesmo que tudo pode ser perdoado? Ou há coisas que ficam para sempre entre pais e filhos?