“Filha entregou-me o neto para criar, porque queria fazer carreira”: Anos depois voltou e disse que lhe roubei o filho

— Mãe, eu não aguento mais. — A voz da Sofia tremia do outro lado da linha, abafada pelo choro. — Não consigo cuidar do Tomás e trabalhar ao mesmo tempo. Preciso de ti… por favor, leva-o contigo. Só por uns tempos.

A minha mão apertava o telemóvel com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Ouvia o soluçar da minha filha, sentia-lhe o desespero como se fosse meu. O relógio marcava quase meia-noite e lá fora o vento chicoteava as janelas do meu pequeno apartamento em Almada. O meu coração batia descompassado — era a primeira vez que a Sofia me pedia ajuda assim, despida de orgulho, sem máscaras.

— Sofia, filha, claro que sim. O Tomás é meu neto, é como se fosse meu filho também. Mas tens a certeza? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— Não tenho escolha, mãe. Se não aceitar este estágio em Lisboa, nunca mais vou sair deste ciclo. Preciso de construir uma vida para nós… mas agora não consigo ser tudo ao mesmo tempo. — A voz dela era um sussurro, quase inaudível.

Lembro-me de desligar o telefone e ficar sentada na cozinha, com as mãos a tremer e o olhar perdido no vazio. O meu marido, António, já dormia há horas. Fui até ao quarto dele e sentei-me à beira da cama.

— António… — sussurrei, tocando-lhe no ombro. Ele acordou sobressaltado.

— O que foi, Maria? Está tudo bem?

— A Sofia… ela precisa de nós. Vai trazer o Tomás amanhã. Vamos ficar com ele por uns tempos.

Ele olhou-me nos olhos e vi ali a mesma preocupação que sentia. Mas também vi compreensão. O António sempre foi um homem de poucas palavras, mas de grandes gestos.

Na manhã seguinte, Sofia chegou com o pequeno Tomás ao colo. Tinha apenas dois anos e meio, os olhos grandes e castanhos como os da mãe, o cabelo despenteado e um ar assustado. Sofia mal conseguiu olhar para mim enquanto me entregava o filho.

— Prometo que venho vê-lo sempre que puder — disse ela, a voz embargada.

— Vai correr tudo bem, filha. — Abracei-a com força, tentando transmitir-lhe coragem.

Os primeiros meses foram difíceis. Tomás chorava muito à noite, chamava pela mãe nos sonhos e acordava sobressaltado. Eu embalava-o nos braços, cantava-lhe as canções de embalar que costumava cantar à Sofia quando era pequena. O António fazia-lhe aviõezinhos com a colher ao pequeno-almoço e levava-o ao parque nos fins de semana.

Sofia vinha vê-lo aos domingos, mas estava sempre apressada, com olheiras fundas e o telemóvel a tocar sem parar. Falava do trabalho no escritório de advogados em Lisboa, das reuniões intermináveis, dos prazos apertados. Cada vez que se ia embora, Tomás agarrava-se à saia dela e chorava. E eu ficava com o coração em pedaços.

O tempo foi passando. Os “uns tempos” transformaram-se em meses, depois em anos. Sofia ligava cada vez menos. Às vezes passavam-se semanas sem notícias. Eu tentava justificar: “Ela está a lutar por um futuro melhor para o Tomás.” Mas no fundo sentia uma mágoa surda — como se tivesse perdido a minha filha para sempre.

Tomás cresceu connosco. Entrou na escola primária do bairro, fez amigos, aprendeu a andar de bicicleta com o avô António. Chamava-me “mãe” sem querer — depois corrigia-se e dizia “avó”, mas eu via nos olhos dele a confusão de quem não entende porque é que a mãe só aparece de vez em quando.

Quando o António adoeceu — um cancro no pulmão diagnosticado tarde demais — foi o Tomás quem me deu forças para continuar. Ele sentava-se ao lado do avô na cama do hospital e contava-lhe histórias inventadas sobre dragões e castelos. No funeral do António, Tomás segurou-me a mão com tanta força que pensei que nunca mais ia conseguir respirar sem aquela pequena âncora.

Foi nesse inverno que a Sofia reapareceu de repente. Bateu à porta numa sexta-feira à noite, vestida de preto dos pés à cabeça, com um ar cansado mas determinado.

— Mãe… preciso falar contigo — disse ela assim que entrou.

Sentámo-nos à mesa da cozinha. Ela olhou-me nos olhos como há muito não fazia.

— Quero levar o Tomás comigo para Lisboa. Arranjei um emprego melhor, tenho uma casa nova… Está na altura dele voltar para junto da mãe.

Senti um frio percorrer-me o corpo inteiro. O Tomás estava no quarto a fazer os trabalhos de casa; não ouviu nada.

— Sofia… ele está habituado aqui… A escola, os amigos… E eu… — A minha voz falhou.

— Não me podes roubar o meu filho! — gritou ela de repente, batendo com a mão na mesa. — Já me tiraste tudo! A minha juventude, os meus sonhos… Agora queres ficar com ele também?

Fiquei sem palavras. Nunca pensei ouvir aquilo da boca da minha filha.

— Sofia… foste tu que mo entregaste! Eu só fiz o que achava melhor para ele…

— Fizeste o que era melhor para ti! Sempre quiseste controlar tudo! — Ela levantou-se de rompante e saiu da cozinha antes que eu pudesse responder.

Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na sala a olhar para as fotografias do Tomás espalhadas pelas prateleiras: o primeiro dia de escola, o aniversário no parque, as férias na praia da Costa da Caparica… Cada imagem era uma recordação do tempo que passámos juntos — tempo roubado ou tempo dado por amor?

No dia seguinte, Sofia voltou com um advogado. Disse que tinha direito ao filho e que ia levá-lo nem que fosse à força. O Tomás ouviu tudo do corredor e entrou na sala a chorar.

— Avó… eu não quero ir embora! — gritava ele entre soluços.

O advogado tentou acalmá-lo, mas eu só conseguia pensar em como tudo tinha chegado àquele ponto: mãe contra filha, avó contra mãe… E no meio disto tudo, uma criança perdida entre dois amores diferentes.

Acabámos por ir parar ao tribunal de família em Lisboa. Foram meses de audiências, relatórios sociais, psicólogos a falar com o Tomás e perguntas sem fim sobre quem podia dar-lhe “melhores condições”. Eu sentia-me esgotada; Sofia parecia cada vez mais fria e distante.

No final, o juiz decidiu que Tomás devia ir viver com a mãe durante a semana e passar os fins de semana comigo em Almada. Quando ouvi a sentença senti um alívio misturado com tristeza: ia perder o meu neto todos os dias, mas pelo menos não ia perdê-lo para sempre.

Na primeira noite sem ele em casa, sentei-me na cama dele e chorei como há muito não chorava. Senti-me vazia — como se tivessem arrancado uma parte de mim.

Os meses seguintes foram estranhos: Sofia tentava ser uma mãe presente mas não sabia como; Tomás sentia-se deslocado em Lisboa; eu tentava não interferir mas doía-me vê-los afastados um do outro.

Um dia recebi uma mensagem do Tomás: “Avó, posso ir aí este fim de semana? Sinto saudades.”

Quando ele chegou corri para o abraçar e percebi que nada nem ninguém podia apagar os laços criados pelo amor verdadeiro — mesmo quando esse amor nasce do sacrifício e da dor.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que devia ter lutado mais ou menos? Quantas famílias portuguesas vivem dramas como este todos os dias? E vocês — até onde iriam por um filho ou um neto?