Estava Prestes a Transferir o Dinheiro para o Apartamento, Mas a Minha Filha Gritou — E Ela Tinha Razão
— Mãe, não! Não faças isso! — O grito da Mia ecoou pelo corredor do banco, cortando o silêncio pesado que pairava sobre mim. O funcionário olhou-me, hesitante, com o dedo suspenso sobre o teclado. Eu sentia o suor frio escorrer-me pelas costas, as mãos trémulas a segurar o telemóvel onde tinha o IBAN da suposta proprietária do apartamento.
A minha filha, de dez anos, agarrava-se à minha camisola com tanta força que quase me rasgava a manga. Os olhos dela estavam vermelhos, cheios de lágrimas e raiva. Eu só queria protegê-la, dar-lhe um lar depois de tudo o que passámos desde que o Pedro nos deixou. Mas naquele momento, sentia-me mais perdida do que nunca.
Tudo começou há seis meses, quando o Pedro saiu de casa com uma mala pequena e um pedido de desculpas murmuradas. “Preciso de espaço, Patrícia. Não sou feliz aqui.” Fiquei sozinha com uma filha assustada e uma renda impossível de pagar. Vendi quase tudo: a máquina de café que ele adorava, os livros antigos do meu pai, até as jóias da minha mãe. Cada euro era contado e guardado num envelope escondido no fundo da gaveta das meias.
Procurei apartamentos em Lisboa durante semanas. Os preços eram absurdos — até para um T1 minúsculo num bairro longe do centro. Publiquei um anúncio num grupo do Facebook: “Procuro apartamento para mãe e filha. Orçamento limitado.” Não demorou muito até receber uma mensagem da Dona Graça.
— Olá Patrícia, vi o seu anúncio. Tenho um T1 em Benfica, muito soalheiro e calmo. Se quiser vir ver, diga-me.
A esperança reacendeu-se no meu peito. Benfica era longe do trabalho, mas pelo menos era seguro e tinha escolas por perto. Combinei logo uma visita para o sábado seguinte.
Quando chegámos ao prédio antigo, Mia torceu o nariz.
— Cheira a mofo, mãe.
— É só o hall de entrada, filha. Lá em cima deve ser melhor.
Dona Graça esperava-nos à porta do terceiro andar. Era uma mulher baixa, cabelo pintado de vermelho vivo e unhas compridas. Falava depressa e sorria muito.
— Entre, entre! O apartamento está vazio porque os inquilinos saíram há pouco. Preciso mesmo de alguém de confiança.
O apartamento era pequeno mas luminoso. A cozinha tinha azulejos antigos com desenhos de galos e a sala dava para uma varanda minúscula. Mia correu logo para ver o quarto.
— Mãe, posso ficar com este? — perguntou ela, os olhos brilhantes pela primeira vez em meses.
Assenti, emocionada. Dona Graça explicou tudo: precisava de sinalização rápida porque tinha outros interessados. O preço era baixo demais para Lisboa — mas eu queria tanto acreditar que era sorte e não armadilha.
Naquela noite, Mia não dormiu bem. Acordou-me às três da manhã.
— Mãe… achas que é mesmo seguro? Ela parecia estranha.
— Mia, temos de confiar em alguém. Não podemos viver com medo para sempre.
No dia seguinte, Dona Graça mandou-me o IBAN por mensagem e pediu que transferisse metade do valor como sinal. Disse que assim garantia o apartamento para nós.
Fui ao banco com Mia pela mão. O funcionário pediu-me para confirmar os dados antes de transferir. Nesse instante, Mia começou a chorar e a gritar:
— Não faças isso! Ela está a mentir! Não gosto dela!
Senti-me humilhada com todos a olhar para nós. Mas olhei para a minha filha — tão pequena e tão assustada — e hesitei.
— Mia… porquê? — perguntei-lhe baixinho.
Ela soluçou:
— Ela não nos mostrou a cave nem as caixas do correio… E não tinha chaves verdadeiras! Só abriu a porta com uma chave mestra! E… e tu disseste que ela não te pediu documentos nem nada!
O funcionário do banco tossiu discretamente.
— Desculpe intrometer-me… mas já ouvi falar de esquemas assim. Tem a certeza que conhece mesmo a proprietária?
O chão fugiu-me dos pés. Lembrei-me das histórias nos jornais: pessoas enganadas por falsas senhorias, apartamentos arrendados a várias famílias ao mesmo tempo… Senti-me estúpida por ter ignorado os sinais só porque queria tanto aquele lar para nós.
Saímos do banco em silêncio. Mia abraçou-me com força na rua.
— Desculpa ter feito birra… — murmurou ela.
— Não peças desculpa, filha. Salvaste-nos.
Durante dias fiquei em choque. Dona Graça nunca mais respondeu às minhas mensagens. O anúncio desapareceu do Facebook. Senti raiva de mim mesma por quase cair numa armadilha tão óbvia — mas também gratidão pela intuição da minha filha.
A minha mãe ligou-me nesse dia à noite.
— Patrícia, volta para casa. Não tens de passar por isto sozinha.
Discutimos muito nos últimos anos — ela nunca aceitou bem o meu casamento com Pedro nem as minhas escolhas profissionais — mas naquele momento percebi que precisava dela mais do que nunca.
Voltámos para casa dos meus pais em Almada. Não foi fácil: partilhar espaço com eles depois de tantos anos foi um teste à minha paciência e orgulho. O meu pai implicava com tudo:
— Não deixes os sapatos na entrada! — gritava ele todos os dias.
A minha mãe tentava apaziguar:
— Deixa lá a rapariga em paz! Já tem problemas suficientes!
Mia chorava muitas noites com saudades do nosso antigo apartamento e dos brinquedos que tivemos de vender. Eu chorava baixinho no duche para ninguém ouvir.
Mas aos poucos fomos encontrando rotinas novas: pequenos-almoços apressados antes da escola, tardes no parque junto ao rio, risos partilhados à mesa mesmo quando havia discussões sobre política ou futebol.
Comecei a trabalhar como administrativa numa clínica dentária perto de casa dos meus pais. O salário era baixo mas suficiente para ir juntando algum dinheiro outra vez. Mia fez amigos novos na escola e até começou a sorrir mais vezes.
Um dia, ao buscar a Mia à escola, encontrei a mãe da Inês — uma colega dela — que me falou de um apartamento disponível no prédio dela. Era pequeno mas honesto; o senhorio era conhecido na zona há décadas.
Desta vez fui ver tudo com olhos abertos: pedi documentos, falei com vizinhos, confirmei tudo no registo predial antes sequer de pensar em transferir dinheiro. Quando finalmente assinei o contrato e entreguei as chaves à Mia, ela abraçou-me tão forte que quase me partiu as costelas.
— Agora sim é nossa casa, mãe!
Olhei para ela e sorri entre lágrimas.
Hoje olho para trás e penso: quantas vezes deixamos o desespero toldar-nos o juízo? Quantas mães já caíram em esquemas assim só porque querem proteger os filhos? E se eu não tivesse ouvido a Mia naquele dia?
Será que aprendemos mesmo com os nossos erros — ou precisamos sempre que alguém nos grite quando estamos prestes a cair?