Entre Silêncios e Distâncias: O Meu Caminho Como Mãe

— Mãe, não percebes mesmo nada, pois não? — A voz da Inês ecoou pela cozinha, carregada de uma raiva que me cortou como uma faca. Eu estava a tentar preparar o jantar, mas as mãos tremiam tanto que quase deixei cair o tacho.

Olhei para ela, parada à porta, os olhos brilhantes de lágrimas que se recusava a deixar cair. Tinha 19 anos, mas naquele momento parecia-me ainda a menina que eu embalava nos braços, a quem prometia que tudo ia correr bem. Agora, sentia-me impotente, como se cada palavra minha só servisse para cavar um fosso maior entre nós.

— Inês, por favor… — tentei começar, mas ela virou-me as costas e saiu da cozinha, batendo com a porta do quarto.

Fiquei ali, sozinha com o cheiro do arroz a queimar e o silêncio pesado da casa. O divórcio com o António tinha sido há quase três anos, mas parecia que as feridas nunca fechavam. No início, tentei manter tudo igual para a Inês: os horários, os jantares de domingo, até as piadas parvas à mesa. Mas nada resultava. Ela afastava-se cada vez mais, como se eu fosse culpada de tudo o que lhe doía.

Lembro-me do dia em que o António fez as malas. A Inês tinha ido dormir a casa de uma amiga. Ele não disse muito — nunca foi homem de grandes discursos — mas antes de sair olhou-me nos olhos e disse: “Isto não é só culpa minha.” Fiquei ali parada, a ouvir o som da porta a fechar-se atrás dele, e soube que tinha perdido mais do que um marido.

No início, tentei ser forte. Ia trabalhar no hospital durante o dia e à noite fazia questão de estar presente para a Inês. Mas ela começou a chegar tarde, a responder-me com monossílabos. Uma vez ouvi-a ao telefone com uma amiga: “A minha mãe nem repara em mim.” Aquilo doeu mais do que qualquer discussão.

As discussões tornaram-se rotina. Pequenas coisas — o quarto desarrumado, as notas baixas na escola, as saídas sem avisar — transformavam-se em batalhas campais. Eu gritava porque tinha medo de perdê-la; ela gritava porque já se sentia perdida.

Uma noite, depois de uma discussão particularmente feia sobre um exame que ela tinha chumbado, sentei-me no sofá e chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me falhada como mãe. Lembrei-me da minha própria mãe, a Dona Amélia, sempre tão distante e fria comigo. Jurei tantas vezes que nunca seria assim com a minha filha… E ali estava eu, repetindo os mesmos erros.

No Natal passado tentei fazer as pazes. Preparei-lhe o prato favorito — bacalhau com natas — e comprei-lhe um livro de poesia da Sophia de Mello Breyner Andresen, que sabia que ela adorava. Quando lhe entreguei o presente, ela olhou para mim com uma expressão estranha.

— Obrigada… — murmurou, mas não sorriu. Depois saiu para ir ter com os amigos.

Naquela noite, sentei-me à mesa sozinha e olhei para as luzes da árvore de Natal a piscarem no escuro. Senti um vazio tão grande dentro de mim que pensei que nunca mais ia conseguir preenchê-lo.

O tempo foi passando e fui-me resignando à distância. Falávamos pouco; quando falávamos era quase sempre para discutir. Os meus colegas no hospital perguntavam pela Inês e eu respondia sempre com um sorriso forçado: “Está bem… está crescida.” Por dentro sentia-me a desmoronar.

Um dia, ao regressar do trabalho mais cedo do que o habitual, ouvi vozes vindas do quarto da Inês. Ela estava ao telefone e não me viu encostar à porta entreaberta.

— A minha mãe nunca me quis verdadeiramente… — ouvi-a dizer baixinho. — Sempre fui um peso para ela desde o divórcio.

Senti um aperto no peito tão forte que tive de me sentar no chão do corredor. Como era possível ela pensar aquilo? Eu tinha dado tudo por ela! Mas naquele momento percebi: talvez nunca lhe tivesse mostrado isso da forma certa.

Decidi procurar ajuda. Marquei uma consulta com uma psicóloga familiar — algo que sempre achei desnecessário, mas agora parecia ser a única saída. Convidei a Inês para ir comigo. Ela recusou à primeira, mas depois de muita insistência acabou por aceitar.

Na primeira sessão mal falou. Ficou sentada de braços cruzados, olhar fixo no chão. Eu tentei explicar à psicóloga como me sentia perdida, como tinha medo de perder a minha filha para sempre.

— Sente que a sua mãe está presente na sua vida? — perguntou a psicóloga à Inês.

Ela encolheu os ombros.

— Está… mas não está. Parece que está sempre ocupada ou cansada demais para mim.

Aquilo magoou-me profundamente. Mas também me fez perceber que talvez eu estivesse tão focada em manter tudo sob controlo — o trabalho, as contas da casa, as rotinas — que me esqueci do essencial: estar realmente presente.

As sessões continuaram durante meses. Aos poucos começámos a falar mais abertamente sobre o passado: sobre o divórcio, sobre as noites em que chorei sozinha no quarto sem saber como lidar com tudo aquilo; sobre os medos dela de ser abandonada por mim também.

Houve dias em que pensei em desistir. Era doloroso reviver certas memórias; era ainda mais doloroso ouvir as mágoas da Inês ditas em voz alta. Mas continuei porque sabia que era a única forma de reconstruir algo entre nós.

Um dia, depois de uma sessão particularmente intensa, fomos dar um passeio à beira-rio em Lisboa. O sol estava a pôr-se e as luzes da cidade refletiam-se na água.

— Mãe… — disse ela de repente — Achas mesmo que algum dia vamos voltar a ser como antes?

Parei e olhei para ela. Vi nos olhos dela uma esperança tímida misturada com medo.

— Não sei se vamos voltar a ser como antes… — respondi devagar — Mas quero muito construir algo novo contigo. Algo melhor.

Ela sorriu pela primeira vez em muito tempo e senti uma pontinha de esperança nascer dentro de mim.

A nossa relação ainda não é perfeita. Ainda discutimos; ainda há silêncios desconfortáveis à mesa; ainda há dias em que sinto que estou a falhar como mãe. Mas agora falamos mais abertamente sobre os nossos sentimentos; agora sei pedir desculpa quando erro; agora sei ouvir sem julgar.

Às vezes pergunto-me se teria feito tudo diferente se soubesse o que sei hoje. Teria sido menos dura? Teria ouvido mais e falado menos? Teria conseguido proteger melhor a minha filha das dores do mundo?

Mas talvez seja isso ser mãe: errar, tentar outra vez e nunca desistir de amar.

E vocês? Já sentiram esta distância dentro da vossa própria família? O que fariam diferente se pudessem voltar atrás?