Entre Quatro Paredes: Quando o Lar se Torna um Campo de Batalha
— Não vou vender a casa, Mariana! — gritou o meu pai, a voz rouca de raiva e mágoa, enquanto batia com a mão na mesa da cozinha, fazendo saltar as migalhas do pão de centeio. — Esta casa é tudo o que me resta da tua mãe!
O meu irmão, o Rui, encostado à ombreira da porta, cruzou os braços e olhou para mim, como se eu fosse a juíza de um tribunal invisível. — Então não contes comigo para ficar aqui a tomar conta de ti, pai. Já tenho a minha vida em Lisboa, não posso largar tudo por causa de uma teimosia.
Eu, no meio dos dois, sentia o peito apertado, como se o ar me faltasse. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão que pairava no ar. O relógio da parede marcava as oito da manhã, mas parecia já ser noite dentro daquela cozinha.
Desde que a mãe morreu, há dois anos, que a casa em Vila Nova de Poiares se tornou um campo de batalha. O meu pai, António, agarrava-se às paredes como se fossem o último fio que o ligava à vida. O Rui, sempre prático, queria vender tudo, dividir o dinheiro e seguir em frente. Eu… eu só queria paz. Mas a paz parecia um luxo impossível.
— Mariana, diz qualquer coisa! — implorou o Rui, a voz a tremer entre a raiva e o desespero. — Não podes continuar a fingir que isto se resolve sozinho.
Olhei para o chão, para as lajes frias que tantas vezes lavei ao lado da mãe. Lembrei-me das tardes de domingo, do cheiro a bolo de laranja, das gargalhadas que agora pareciam ecos distantes. Senti as lágrimas a quererem saltar, mas engoli-as. Não podia fraquejar.
— Pai, tu sabes que não podes ficar aqui sozinho. A casa está a cair aos bocados, e tu já não tens saúde para isto… — tentei argumentar, mas ele cortou-me a palavra.
— Não me interessa! — gritou, batendo com o punho na mesa. — Se querem vender, vendam. Mas eu não saio daqui com vida!
O Rui bufou, virou costas e saiu para o quintal, deixando a porta bater com força. Fiquei ali, sozinha com o meu pai, o silêncio a pesar mais do que qualquer palavra.
O meu marido, o Miguel, já me tinha avisado: — Mariana, não te metas nisso. Cada vez que vais lá, voltas pior. E nós? E os miúdos? Não podemos viver sempre à espera que resolvas os problemas deles.
Mas como podia eu virar costas ao meu pai? Como podia eu trair o meu irmão? E, acima de tudo, como podia eu não me trair a mim mesma?
Os dias seguintes foram um arrastar de discussões, telefonemas, silêncios cortantes. O Rui ameaçou cortar relações. O meu pai fechou-se ainda mais, recusando comer, recusando falar. Eu sentia-me a desmoronar, como as paredes húmidas daquela casa antiga.
Uma noite, depois de deitar os meus filhos, sentei-me no sofá, exausta. O Miguel aproximou-se, pousou a mão no meu ombro.
— Mariana, tens de escolher. Ou resolves isto, ou perdes-te a ti própria. Não podemos continuar assim.
Chorei baixinho, sem forças para discutir. Senti-me sozinha, perdida entre dois mundos. O telefone tocou. Era o Rui.
— Preciso de falar contigo. Amanhã, às dez, no café do Zé.
Na manhã seguinte, sentei-me à mesa do café, as mãos a tremerem em torno da chávena de galão. O Rui chegou atrasado, olheiras fundas, o cabelo desgrenhado.
— Isto não pode continuar, mana. O pai está a destruir-se, e tu também. Eu não consigo, Mariana. Não consigo ser o filho que ele quer. Não sou como tu. — A voz dele quebrou-se, e pela primeira vez vi o meu irmão chorar.
— Eu também não sou, Rui. Só estou a tentar… — mas as palavras morreram-me na garganta.
— E o Miguel? E os teus filhos? Vais sacrificar tudo por causa disto?
Fiquei sem resposta. O Rui levantou-se, pagou o café e saiu. Fiquei ali, sozinha, a olhar para o fundo da chávena, como se ali estivesse a solução para todos os meus problemas.
Voltei à casa do pai. Encontrei-o sentado no alpendre, a olhar para o campo, os olhos perdidos no horizonte.
— Mariana, tu eras a favorita da tua mãe. Ela dizia sempre que tu tinhas o coração grande demais para este mundo. Mas às vezes, filha, o coração também precisa de descanso.
Sentei-me ao lado dele, em silêncio. O vento trazia o cheiro da terra molhada. Lembrei-me das histórias que a mãe contava, das noites à lareira, do calor do lar que agora parecia tão distante.
— Pai, eu não posso ficar aqui contigo. Tenho a minha família, os meus filhos. Mas também não quero que fiques sozinho. Porque não aceitas ir para o lar do senhor Manuel? É perto, podes vir cá sempre que quiseres…
Ele olhou-me, os olhos cheios de lágrimas que nunca vi chorar.
— Mariana, eu sei que estou a ser egoísta. Mas esta casa… é tudo o que me resta dela. Se eu sair daqui, é como se ela morresse outra vez.
Abracei-o, sentindo o corpo dele frágil, quase a desfazer-se nos meus braços.
— Ela nunca vai morrer, pai. Enquanto nós nos lembrarmos dela, enquanto esta família existir, ela está connosco.
Naquela noite, sonhei com a mãe. Ela sorria, sentada à mesa da cozinha, a cortar fatias de bolo. Acordei com o coração apertado, mas com uma estranha sensação de paz.
No dia seguinte, o pai chamou-me ao quarto.
— Falei com o senhor Manuel. Vou experimentar o lar durante um mês. Se não gostar, volto. Mas prometes que vens visitar-me todas as semanas?
Prometi. E cumpri. O Rui voltou a casa, pediu desculpa ao pai. O Miguel aceitou que eu passasse mais tempo com eles, desde que não me esquecesse de nós.
A casa ficou vazia, mas cheia de memórias. Vendemo-la, sim. Mas antes, fizemos um último jantar em família, à volta da mesa antiga. Rimos, chorámos, brindámos à mãe, ao pai, a nós.
Hoje, quando passo pela rua da casa velha, olho para as janelas e vejo sombras do que fomos. Pergunto-me se alguma vez poderíamos ter feito diferente. Se é possível salvar uma família sem nos perdermos a nós próprios.
E vocês, o que fariam no meu lugar? Até onde iriam para manter a família unida, sem se esquecerem de quem são?