Entre o Mar e o Lar: O Dia em que o Meu Pai Biológico Voltou

— O teu pai voltou, Inês. — A voz da minha mãe ecoou na cozinha, cortando o silêncio como uma faca afiada. Eu estava a lavar a loiça do jantar, as mãos trémulas de cansaço e de uma ansiedade que não sabia nomear. Olhei para ela, sem perceber se tinha ouvido bem.

— O quê? — perguntei, a voz presa na garganta.

Ela pousou o pano da loiça na bancada e fitou-me com aqueles olhos castanhos, fundos de quem já chorou demais. — O teu pai… o António. Ele voltou a Portugal. Quer ver-te.

O prato escorregou-me das mãos e partiu-se no lava-loiça. O som seco do vidro a estilhaçar pareceu-me um presságio. Senti o coração bater descompassado, como se quisesse fugir do peito.

Durante anos, o nome António era apenas uma sombra na minha vida. O homem que me deixou quando eu tinha cinco anos, com promessas de cartas que nunca chegaram e telefonemas que nunca aconteceram. A minha mãe dizia sempre: “O teu pai é um homem do mar, Inês. Não nasceu para ficar preso a terra firme.” E eu cresci a acreditar que ele era um aventureiro, alguém especial, diferente dos outros pais das minhas amigas da escola.

Mas foi o Rui, o meu padrasto, quem me ensinou a andar de bicicleta, quem me levou ao hospital quando parti o braço, quem me ajudou com os trabalhos de casa de matemática. Foi ele quem me chamou “filha” pela primeira vez quando fiz dez anos e chorei porque nenhuma das minhas amigas apareceu à festa.

Agora, aos vinte e três anos, com uma licenciatura em Psicologia quase terminada e um estágio num lar de idosos em Lisboa, sentia-me mais perdida do que nunca.

— Ele quer ver-me? — repeti, como se as palavras pudessem ganhar outro significado se as dissesse devagar.

A minha mãe assentiu. — Mandou-me uma mensagem. Diz que está em Setúbal há duas semanas. Que precisa de falar contigo.

Fiquei ali parada, com os cacos do prato nas mãos, sem saber se devia chorar ou gritar. O Rui entrou na cozinha nesse momento, trazendo consigo o cheiro a tabaco e a roupa de trabalho manchada de tinta.

— Está tudo bem? — perguntou, olhando para mim e depois para a minha mãe.

Ela hesitou antes de responder. — O António voltou.

O Rui ficou imóvel por um segundo. Depois, pousou as chaves na mesa e suspirou fundo. — E agora?

Ninguém respondeu. O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível.

Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo os sons da casa: o ranger do soalho antigo, o vento a bater nas persianas, o ressonar baixo do Rui no quarto ao lado. Lembrei-me das vezes em que desejei conhecer o meu pai biológico, de todas as perguntas sem resposta: Porque é que nos deixou? Porque é que nunca escreveu? Será que pensava em mim?

Na manhã seguinte, sentei-me à mesa da cozinha com a minha mãe.

— Achas que devo ir? — perguntei-lhe.

Ela olhou para mim com ternura e tristeza nos olhos. — Só tu podes decidir isso, filha. Mas lembra-te: família não é só sangue.

O Rui entrou pouco depois. Sentou-se ao meu lado e pousou a mão sobre a minha.

— Se quiseres ir… eu compreendo — disse ele, com aquela voz calma que sempre me acalmava nos piores momentos. — Mas lembra-te de quem esteve sempre aqui.

As palavras dele ficaram comigo durante todo o dia. No trabalho, enquanto ajudava a Dona Amélia a fazer palavras cruzadas ou ouvia o Senhor Joaquim contar histórias da infância no Alentejo, sentia-me dividida entre dois mundos: o do homem que me deu a vida e o do homem que me ensinou a vivê-la.

No fim da tarde, decidi ligar ao António. As mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair o telemóvel.

— Estou? — A voz dele era mais rouca do que eu imaginava, mas havia nela uma urgência quase infantil.

— É a Inês… — disse eu, sentindo um nó na garganta.

Silêncio do outro lado. Depois ouvi um suspiro longo.

— Inês… filha…

A palavra “filha” soou estranha vinda dele. Como se não me pertencesse.

— Podemos encontrar-nos? — perguntou ele.

Marcámos para sábado à tarde, num café junto ao rio Sado. Passei os dias seguintes num estado de nervosismo constante. A minha mãe tentava animar-me com bolos e chá quente; o Rui fingia não estar magoado mas eu via-lhe nos olhos uma tristeza funda.

No sábado vesti-me como se fosse para uma entrevista de emprego: camisa branca engomada, calças de ganga escuras e um casaco azul-escuro que era do Rui quando era jovem. Cheguei ao café meia hora mais cedo e pedi um galão para disfarçar as mãos trémulas.

Quando o António entrou, reconheci-o logo: alto, magro, cabelo grisalho apanhado num rabo-de-cavalo desalinhado. Os olhos eram iguais aos meus — castanhos claros, quase dourados à luz do sol.

— Olá, Inês — disse ele, sorrindo timidamente.

Ficámos uns segundos em silêncio antes de ele se sentar à minha frente.

— Estás tão crescida… — murmurou ele.

Eu não sabia o que dizer. Olhei para as mãos dele: calejadas, unhas curtas e sujas de óleo ou tinta de barco.

— Porque é que foste embora? — perguntei de repente, sem conseguir conter as lágrimas.

Ele baixou os olhos. — Eu era novo… estúpido… achei que precisava de ver o mundo antes de ser pai. Mas nunca deixei de pensar em ti.

— Então porque é que nunca escreveste? Nunca ligaste?

Ele encolheu os ombros. — Tinha vergonha. Medo de não saber ser pai… Quando tentei voltar já era tarde demais.

Ficámos ali sentados durante horas. Ele contou-me histórias das tempestades no Atlântico, dos portos em Marrocos e Cabo Verde, das noites passadas sozinho no convés a olhar para as estrelas e pensar em mim. Eu ouvi tudo em silêncio, tentando encontrar naquele homem algum traço do pai que imaginei durante tantos anos.

Quando voltei para casa nessa noite, encontrei o Rui sentado na sala a ver televisão. Sentei-me ao lado dele sem dizer nada. Ele olhou para mim e sorriu tristemente.

— Então?

— Ele é só um homem… — respondi baixinho. — Um homem cheio de falhas e arrependimentos.

O Rui passou-me o braço pelos ombros e puxou-me para junto dele.

— Todos somos assim, Inês. Mas tu és minha filha desde o dia em que te vi pela primeira vez naquela cozinha cheia de farinha e lágrimas.

Chorei baixinho no ombro dele. Pela primeira vez em muitos anos senti-me inteira — não por ter reencontrado o meu pai biológico, mas por perceber finalmente quem era realmente o meu pai.

Nos dias seguintes continuei a falar com o António. Às vezes encontrávamo-nos para almoçar ou passear junto ao rio. Ele tentava recuperar o tempo perdido; eu tentava perdoar-lhe sem esquecer tudo o que vivi sem ele.

Mas foi numa noite chuvosa de novembro que percebi tudo: estava sentada à mesa com a minha mãe e o Rui, ríamos juntos das histórias antigas da família quando senti uma paz profunda dentro de mim. Não importava quem me tinha dado a vida; importava quem tinha ficado ao meu lado nos momentos bons e maus.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que somos definidos pelo sangue ou pelo amor? Será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos abandonou? E vocês… quem consideram realmente família?