Entre o Amor e o Orgulho: O Dia em Que Deixei de Ser Pai
— Não posso acreditar, Inês! — gritei, a voz embargada, enquanto a minha filha desviava o olhar, os olhos marejados de lágrimas. — Depois de tudo o que fiz por ti, escolhes o Mário para te levar ao altar? O teu padrasto?
Ela ficou em silêncio, mordendo o lábio inferior, como fazia quando era pequena e sabia que tinha feito asneira. Mas agora não era uma birra de infância; era a decisão mais importante da sua vida. E eu, Ricardo, o pai que a criou sozinho durante anos, estava a ser posto de lado como se fosse um estranho.
A sala de estar estava mergulhada numa tensão quase palpável. O relógio de parede marcava as dez da noite, mas ninguém pensava em dormir. A minha mulher, Teresa, tentava acalmar-me, mas eu sentia o sangue a ferver nas veias. O Mário, sentado no sofá, mantinha-se calado, olhando para o chão, como se quisesse desaparecer dali.
— Pai, não é isso… — começou a Inês, a voz trémula. — O Mário esteve sempre presente, mesmo quando tu…
— Quando eu quê? — interrompi, sentindo o orgulho ferido a transformar-se em raiva. — Quando eu trabalhava horas a fio para te dar tudo? Quando me desdobrava para que nunca te faltasse nada? Quando engoli o meu próprio sofrimento para que tivesses uma infância feliz, mesmo depois da tua mãe nos ter deixado?
O silêncio caiu como uma sentença. Lembrei-me de todas as noites em que ficava acordado, preocupado com as febres dela, das festas de aniversário improvisadas porque o dinheiro não chegava para mais, dos passeios ao Jardim da Estrela, das histórias inventadas para a fazer rir. E agora, tudo isso parecia insignificante perante a escolha dela.
— O Mário não é teu pai, Inês! — atirei, a voz a falhar-me. — Pode ter sido bom para ti, mas nunca será o teu pai.
Ela chorava agora, as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto. Teresa aproximou-se dela, abraçando-a, enquanto eu sentia o chão fugir-me dos pés. O Mário levantou-se, hesitante.
— Ricardo, eu nunca quis substituir-te. Só tentei estar presente, ajudar…
— Não me venhas com desculpas, Mário! — cortei, incapaz de conter a amargura. — Sempre foste o bonzinho, o compreensivo. Mas eu sou o pai dela. Eu!
Aquela noite foi o início do fim. Durante dias, a casa ficou mergulhada num silêncio pesado. Inês evitava-me, Teresa tentava mediar, mas eu sentia-me traído. Como podia a minha filha escolher outro homem para um momento tão simbólico? O casamento era daqui a três meses, e eu já tinha começado a pagar o salão, o fotógrafo, o vestido. Agora, tudo me parecia uma farsa.
No trabalho, não conseguia concentrar-me. Os colegas notavam o meu mau humor, mas ninguém se atrevia a perguntar. À noite, deitava-me cedo, fingindo dormir para não ter de falar com ninguém. O orgulho ferido era uma ferida aberta, latejante.
Uma semana depois, Inês bateu à porta do meu quarto. Entrou devagar, sentou-se na beira da cama.
— Pai, preciso que me ouças. — A voz dela era baixa, mas determinada. — Eu amo-te. Sempre te amei. Mas o Mário… ele esteve lá quando tu não conseguias. Quando estavas perdido depois do divórcio, quando te fechaste no teu mundo. Ele foi o ombro que eu precisei. Não quero escolher entre vocês. Mas quero honrar os dois.
Senti um nó na garganta. Lembrei-me dos meses a seguir ao divórcio, do vazio, da depressão que me roubou a vontade de viver. Talvez ela tivesse razão. Talvez eu não tenha estado tão presente como pensava. Mas será que isso justificava ser posto de lado agora?
— E eu? — perguntei, quase num sussurro. — O que é que eu sou para ti?
Ela pegou na minha mão, apertou-a.
— És o meu pai. Sempre serás. Mas preciso que me deixes fazer isto à minha maneira. Preciso que respeites a minha escolha.
Fiquei a olhar para ela, dividido entre o amor e o orgulho. Queria abraçá-la, dizer-lhe que tudo estava bem. Mas não consegui. O ressentimento era mais forte.
No dia seguinte, sentei-me à mesa com Teresa.
— Não vou pagar o casamento — disse, seco. — Se ela quer o Mário, que seja ele a pagar.
Teresa olhou-me, dececionada.
— Ricardo, não faças isso. Vais arrepender-te. Isto não é sobre dinheiro, é sobre amor.
— O amor também se mede nas escolhas — respondi, levantando-me. — E ela escolheu.
A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. A minha mãe ligou-me, furiosa.
— Vais mesmo fazer isso à tua filha? Depois de tudo?
— Ela fez a escolha dela, mãe. Agora que lide com as consequências.
Os meus irmãos criticaram-me, os amigos dividiram-se. Uns diziam que eu tinha razão, que era uma questão de respeito. Outros achavam que estava a ser mesquinho, que devia pôr o amor de pai acima de tudo.
Os preparativos do casamento continuaram, mas sem o meu apoio. Inês arranjou um trabalho extra para ajudar a pagar as despesas. O Mário, envergonhado, tentou falar comigo várias vezes, mas eu evitava-o. Teresa chorava às escondidas, cansada de tanta tensão.
O dia do casamento chegou. Vesti o fato, mas não fui. Fiquei em casa, sozinho, a olhar para as fotografias antigas da Inês em criança. O telefone tocou várias vezes, mas não atendi. Senti-me vazio, derrotado. O orgulho tinha vencido o amor.
À noite, Inês apareceu em casa, ainda com o vestido de noiva. Os olhos vermelhos, a maquilhagem borrada.
— Pai, casei-me. Mas faltaste tu. E isso vai doer para sempre.
Abraçou-me, e eu chorei como há muito não chorava. Percebi, tarde demais, que o amor de pai não se mede em gestos simbólicos, mas na capacidade de perdoar, de aceitar, de estar presente mesmo quando dói.
Hoje, escrevo esta história com o coração apertado. Pergunto-me: quantos pais e filhos se afastam por orgulho? Vale a pena perder quem amamos só para provar um ponto? Se pudesse voltar atrás, faria tudo diferente. E tu, o que farias no meu lugar?