Entre Dois Fogos: Como Me Perdi Entre a Minha Família e as Necessidades da Minha Sogra
— Inês, vais mesmo deixar a tua mãe sozinha outra vez? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, carregada de uma exaustão que já não conseguia esconder.
Olhei para ele, com as mãos ainda molhadas da loiça, e senti o nó apertar-se no meu peito. O relógio marcava quase meia-noite, mas o cansaço não era só físico. Era uma fadiga que me roía por dentro, feita de pequenas concessões diárias, de silêncios engolidos e de promessas quebradas a mim mesma.
— Miguel, eu não posso estar em dois sítios ao mesmo tempo. — A minha voz saiu mais baixa do que queria. — A tua mãe precisa de ajuda, tu sabes disso.
Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo. — E os nossos filhos? E nós? Quando é que somos família?
Fiquei ali parada, sentindo o peso das palavras dele. Ouvia o tic-tac do relógio misturado com os risos abafados dos miúdos no quarto ao lado. Oiço-os todos os dias, mas ultimamente parece que estou sempre ausente, mesmo quando estou presente.
A minha sogra, Dona Teresa, ficou viúva há dois anos. Desde então, cada fim de semana tornou-se uma obrigação: limpar a casa dela, fazer-lhe companhia, levá-la às compras. No início, achei que era o mínimo que podia fazer. Afinal, ela sempre foi boa para mim, mesmo com aquele jeito seco típico das mulheres da Beira Alta.
Mas agora… agora sinto que me perdi algures neste caminho.
No sábado de manhã, acordei com o som do telemóvel. Era uma mensagem da Dona Teresa: “Inês, não te esqueças do pão e do leite. E vê se trazes o Miguel.”
Levantei-me devagar, tentando não acordar o Miguel. Fui à casa de banho e olhei-me ao espelho. Os olhos fundos denunciavam noites mal dormidas. Senti vontade de chorar, mas engoli as lágrimas. Não podia fraquejar.
No carro, os miúdos discutiam sobre quem ia sentar-se à frente. O Miguel estava calado, a olhar pela janela. Quando chegámos à casa da sogra, ela já estava à porta.
— Finalmente! Pensei que tinham adormecido todos! — disse ela, sem sequer um bom dia.
— Bom dia, Dona Teresa — respondi, forçando um sorriso.
Ela virou-se para o Miguel: — Vai buscar as caixas ao sótão. Inês, ajuda-me na cozinha.
Enquanto cortava legumes ao lado dela, tentei puxar conversa:
— Dona Teresa, talvez devêssemos pensar em arranjar alguém para ajudar durante a semana…
Ela largou a faca na bancada com força.
— Não preciso de estranhos cá em casa! Tenho-vos a vocês! Para que servem as famílias?
Senti o rosto arder. Quis responder, mas calei-me. O Miguel apareceu à porta da cozinha e percebeu logo o ambiente pesado.
— Mãe, a Inês só está a tentar ajudar…
— Não preciso de ajuda! Preciso é de companhia! — cortou ela.
O resto do dia passou-se entre tarefas e silêncios desconfortáveis. Ao final da tarde, quando finalmente voltámos para casa, os miúdos adormeceram no carro. O Miguel olhou para mim:
— Isto não pode continuar assim.
Assenti em silêncio. Mas como mudar? Se dissesse à Dona Teresa que não podíamos ir todos os fins de semana, ela ficaria sozinha. Se continuasse assim, arriscava-me a perder a minha própria família.
Durante a semana seguinte tentei falar com a minha mãe ao telefone. Ela mora em Coimbra e raramente nos vemos. Senti saudades dela como nunca antes.
— Filha, tens de pensar em ti também — disse ela com aquela voz doce que me fazia sentir criança outra vez. — Não podes carregar o mundo às costas.
Mas como explicar isso à Dona Teresa? Como explicar ao Miguel que eu também precisava de tempo para mim?
Na sexta-feira seguinte, sentei-me com o Miguel depois de jantar.
— Precisamos de falar — comecei.
Ele pousou o garfo e olhou-me nos olhos.
— Eu amo-te — disse-lhe. — Mas sinto-me sufocada. Sinto que estou a perder-me nisto tudo.
Ele ficou calado durante uns segundos eternos.
— Eu sei… Eu também me sinto assim. Mas é a minha mãe…
— E eu? E nós? — perguntei-lhe quase num sussurro.
Ele passou as mãos pelo rosto e suspirou.
— Talvez devêssemos falar com ela juntos. Explicar-lhe que precisamos de algum tempo só para nós…
No sábado seguinte fomos à casa da Dona Teresa mais cedo do que o habitual. Os miúdos ficaram com uma vizinha amiga. Sentámo-nos na sala e eu senti o coração aos pulos.
— Mãe — começou o Miguel — precisamos de conversar consigo.
Ela olhou-nos desconfiada.
— O que foi agora?
Respirei fundo e tomei coragem:
— Dona Teresa, nós gostamos muito de si e queremos ajudá-la sempre que pudermos. Mas também precisamos de tempo para nós… para os nossos filhos…
Ela ficou em silêncio durante uns segundos intermináveis. Depois levantou-se devagar e foi até à janela.
— Quando o vosso pai morreu… pensei que ia enlouquecer sozinha nesta casa — disse ela sem nos olhar. — Vocês são tudo o que me resta.
O Miguel levantou-se e abraçou-a. Eu aproximei-me também.
— Não está sozinha — disse-lhe baixinho. — Mas precisamos de encontrar um equilíbrio…
Ela chorou baixinho no ombro do filho. Pela primeira vez vi-a frágil, despida daquela armadura dura com que sempre se protegeu do mundo.
Voltámos para casa nesse dia com um peso diferente no peito: não era alívio total, mas era um começo.
Nas semanas seguintes começámos a dividir as tarefas: uma semana íamos nós, na outra ela vinha até nossa casa jantar. Aos poucos fui recuperando algum tempo para mim: comecei a caminhar ao fim da tarde, voltei a ler antes de dormir.
Mas ainda hoje me pergunto: será possível agradar a todos sem nos perdermos pelo caminho? Quantas mulheres como eu vivem presas entre dois fogos? E vocês… já sentiram este aperto no peito?