Entre Dívidas e o Amor de Mãe: A Minha Luta Pela Minha Filha
— Mariana, não podes simplesmente virar costas à família do Rui! — A voz da minha sogra ecoava pela cozinha, carregada de desespero e acusação. Eu sentia o coração apertado, as mãos suadas agarradas à chávena de chá frio. O Rui olhava para mim, os olhos baixos, como se procurasse desculpa para não se envolver.
— Dona Lurdes, eu já fiz tudo o que podia. Já pedi empréstimos, já vendi as minhas jóias… Não posso mais — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo-a tremer.
Ela aproximou-se, os olhos brilhando de lágrimas e raiva. — Mariana, tu és a única que pode ajudar! Se perdermos a casa, onde é que eu vou viver? Achas que é fácil para mim pedir-te isto?
Naquele momento, senti-me esmagada pelo peso da responsabilidade. Não era só a casa dela que estava em jogo; era o futuro da minha filha, Inês, que dormia no quarto ao lado, alheia ao caos que se instalava na nossa família. O Rui, meu marido, sempre tão passivo, limitava-se a suspirar.
A verdade é que tudo começou há dois anos, quando o negócio do Rui faliu. A minha sogra tinha-se endividado para ajudar o filho e agora as dívidas batiam-nos à porta todos os meses. Eu trabalhava como enfermeira no Hospital de Santa Maria e fazia turnos duplos para conseguir pagar as contas. Sentia-me sozinha naquela luta.
Lembro-me de uma noite em particular. Cheguei a casa exausta depois de um turno de 16 horas. Inês estava sentada no sofá, com o pijama cor-de-rosa e o cabelo despenteado.
— Mãe, amanhã vais estar em casa? — perguntou ela, com aquela voz doce que me partia o coração.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a. — Vou tentar, filha. Mas sabes que a mãe tem de trabalhar muito agora.
Ela encolheu-se nos meus braços. — Tenho saudades tuas…
Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante semanas. Cada vez que a minha sogra me pedia mais dinheiro, cada vez que o Rui se escondia atrás do silêncio, eu sentia que estava a perder a minha filha um bocadinho mais.
As discussões tornaram-se rotina. Uma noite, depois de mais uma chamada do banco ameaçando penhorar a casa da Dona Lurdes, explodi:
— Rui, isto não pode continuar! A tua mãe não pode depender de nós para sempre! E a Inês? Quando foi a última vez que lhe leste uma história antes de dormir?
Ele olhou-me com ar cansado. — Mariana, ela é minha mãe… Não posso deixá-la na rua.
— E eu? E a nossa filha? Não contas para nada?
O silêncio dele foi como uma facada. Senti-me invisível.
Comecei a afastar-me emocionalmente. Ia trabalhar cada vez mais horas. Às vezes ficava no hospital mesmo sem necessidade, só para não ter de enfrentar aquela casa cheia de cobranças e ressentimentos. A Inês começou a ter dificuldades na escola. A professora chamou-me:
— Mariana, a Inês está muito distraída. Diz que tem medo que vocês se vão separar.
Senti um nó na garganta. O que estava eu a fazer à minha filha?
Numa manhã chuvosa de novembro, recebi uma carta do tribunal: penhora iminente sobre o nosso carro por causa das dívidas da Dona Lurdes. Sentei-me na cama e chorei como há muito não chorava. O Rui entrou no quarto e ficou parado à porta.
— Mariana… desculpa — murmurou ele.
— Desculpa não chega! — gritei-lhe. — Eu perdi tudo! Perdi tempo com a nossa filha, perdi paz de espírito… E para quê? Para salvar uma casa onde nem sequer sou bem-vinda?
Ele aproximou-se e tentou abraçar-me, mas eu afastei-o. — Preciso de pensar no que quero para mim e para a Inês.
Nessa noite dormi no quarto dela. Olhei para o rosto sereno da minha filha enquanto dormia e prometi-lhe em silêncio: nunca mais vou deixar ninguém tirar-nos tempo juntas.
No dia seguinte tomei uma decisão difícil: disse ao Rui que não ia dar mais dinheiro à mãe dele. Que se quisesse ajudar, teria de arranjar outro emprego ou vender o carro dele. Ele ficou furioso.
— Estás a escolher entre mim e a minha mãe?
— Não! Estou a escolher entre continuar a sacrificar tudo por alguém que nunca me aceitou… ou tentar reconstruir o que resta da nossa família.
A partir daí as coisas pioraram antes de melhorarem. Houve gritos, portas batidas, silêncios gelados à mesa do jantar. A Dona Lurdes deixou de me falar durante meses. O Rui dormiu várias noites no sofá.
Mas aos poucos comecei a recuperar o tempo com a Inês. Levava-a ao parque ao domingo, ajudava-a nos trabalhos de casa, lia-lhe histórias antes de dormir. Ela voltou a sorrir.
O Rui acabou por perceber que tinha de mudar. Arranjou um segundo emprego e começou finalmente a assumir responsabilidades pela mãe dele.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi… mas também tudo o que ganhei. A relação com o Rui nunca voltou a ser igual; há feridas que demoram muito tempo a sarar. Mas eu e a Inês estamos mais próximas do que nunca.
Às vezes pergunto-me: teria feito diferente se soubesse o preço? Até onde devemos ir por amor à família dos outros? E vocês… até onde iriam?