Entre a Fé e o Amor: O Pedido que Mudou a Minha Família
— Mãe, preciso falar contigo. É importante.
A voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de uma urgência que me fez largar a colher de pau no lava-louça. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, mas o meu apetite desapareceu num instante. Olhei para ele, os olhos castanhos tão parecidos com os meus, mas agora cheios de ansiedade.
— O que se passa, filho? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele respirou fundo, olhou para o chão e depois para mim. — Eu e a Sofia… precisamos de ajuda. Queremos comprar casa, mas o banco não nos aprova o crédito sem um fiador. Pensei… pensei se podias hipotecar a tua casa por nós.
O mundo parou. Senti o coração bater descompassado, as mãos suadas. A minha casa. O único bem que tinha, conquistado com anos de sacrifício depois que o António morreu. Lembrei-me das noites em claro, dos turnos duplos no hospital, das contas apertadas para dar ao Rui tudo o que podia. E agora ele pedia-me isto.
— Rui… — comecei, mas a voz falhou-me. — Sabes o que estás a pedir?
Ele aproximou-se, ajoelhou-se ao meu lado como quando era pequeno e pedia desculpa por alguma traquinice.
— Mãe, eu prometo que não te vou deixar ficar mal. Eu e a Sofia vamos pagar tudo certinho. Só precisamos deste empurrão.
A Sofia entrou na cozinha nesse momento, os olhos vermelhos de tanto chorar. — Dona Teresa, eu sei que é muito pedir… mas estamos mesmo aflitos. Não temos ninguém.
Senti-me encurralada entre o amor de mãe e o medo de perder tudo. Passei a noite em claro, ouvindo o tic-tac do relógio da sala misturado com as vozes da minha consciência. Lembrei-me do António, sempre tão prudente com dinheiro. “Nunca arrisques o que não podes perder”, dizia ele.
No dia seguinte, fui à igreja. Sentei-me no último banco e chorei baixinho. Pedi a Deus uma resposta, um sinal, qualquer coisa que me ajudasse a decidir. O padre Manuel viu-me e sentou-se ao meu lado.
— Teresa, queres conversar?
Desabafei tudo. Ele ouviu em silêncio e depois disse:
— O amor de mãe é grande, mas não pode ser cego. Às vezes ajudar é dizer não.
Voltei para casa com o coração pesado. O Rui estava à minha espera na sala.
— Então, mãe?
Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe nas mãos.
— Rui, eu amo-te mais do que tudo neste mundo. Mas esta casa é o nosso porto seguro. Se alguma coisa correr mal… ficamos sem nada. Não posso arriscar isso.
Ele levantou-se bruscamente.
— Sabia! Sempre disseste que fazias tudo por mim, mas agora que preciso mesmo de ti…
As palavras dele cortaram-me como facas. A Sofia tentou acalmá-lo, mas ele saiu porta fora, batendo com força.
Passei dias sem conseguir comer ou dormir direito. A casa parecia vazia sem ele. Os vizinhos começaram a perguntar se estava tudo bem; inventei desculpas. No trabalho, as colegas notavam o meu ar cansado.
Uma semana depois, recebi uma mensagem do Rui: “Desculpa mãe. Estou perdido.” Liguei-lhe imediatamente e combinámos encontrar-nos no café onde costumávamos lanchar quando ele era miúdo.
Ele estava magro, olheiras fundas.
— Mãe… não devia ter-te falado assim. Só estou tão cansado de lutar…
Abracei-o com força.
— Filho, eu entendo. Mas às vezes temos de aprender a cair para depois levantar.
Conversámos durante horas. Falei-lhe dos meus próprios medos quando fiquei viúva, das noites em que pensei em desistir. Disse-lhe que acreditava nele e na Sofia, mas que tinham de encontrar outra solução.
Com o tempo, eles conseguiram arrendar um pequeno apartamento na Amadora. Não era novo nem grande, mas era deles. Aos poucos foram reconstruindo a vida e a relação connosco também foi sarando.
Hoje olho para trás e percebo como foi difícil dizer não ao meu filho. Mas também vejo como foi importante para ele crescer e para mim manter aquilo por que tanto lutei.
Às vezes pergunto-me: será que fui egoísta? Ou será que amar também é saber proteger aquilo que nos mantém de pé? E vocês? Já tiveram de escolher entre ajudar alguém e proteger-se a si próprios?