Ela trocou o filho pelo salão de beleza, e eu acolhi-o como meu – a história que mudou a minha vida
— Não me julgues, por favor, Mariana. Eu não consigo. Não sou feita para isto — a voz da Vera tremia, mas os olhos estavam secos, frios, quase distantes. O pequeno Tomás brincava no tapete da sala, alheio ao peso das palavras da mãe.
Eu sentia o coração a bater descompassado, como se cada batida fosse um grito de revolta. Como é que alguém podia dizer aquilo sobre o próprio filho? Mas conhecia a Vera há anos. Sabia das suas ambições, do sonho antigo de abrir o seu próprio salão de beleza em Lisboa, de ser independente, admirada, livre das amarras que sempre sentiu na família. Só não pensei que o preço fosse este.
— Vera, ele é só um menino… O teu menino — tentei argumentar, mas ela já olhava para o telemóvel, impaciente.
— Mariana, eu preciso disto. Preciso de ser alguém. O Tomás vai ficar melhor contigo. Tu tens jeito para isto. Eu… eu não tenho — disse, levantando-se abruptamente e pegando na mala.
O silêncio que ficou depois da porta bater foi ensurdecedor. Sentei-me no chão ao lado do Tomás, que me olhou com aqueles olhos grandes e castanhos, tão parecidos com os da mãe. Senti uma onda de ternura e medo ao mesmo tempo. Eu própria era mãe solteira da Leonor, uma menina de seis anos cheia de perguntas e sonhos. Agora tinha dois filhos? Como é que se explica isto a uma criança?
Naquela noite, depois de adormecer o Tomás e a Leonor, sentei-me à mesa da cozinha com a cabeça entre as mãos. O telefone tocou. Era a minha mãe.
— Mariana, ouvi dizer que a Vera foi para Lisboa. E deixou-te o miúdo? — a voz dela vinha carregada de julgamento.
— Mãe, ela precisa de tempo… Eu não podia deixá-lo sozinho — tentei justificar.
— Tu sempre foste assim, a querer salvar o mundo. Mas olha que dois filhos sozinha não é brincadeira. E se o pai dele aparece? E se a Segurança Social se mete? — disparou ela.
Eu não tinha respostas. Só sabia que não podia virar costas àquele menino.
Os dias seguintes foram um turbilhão. A Leonor ficou confusa e zangada.
— Porque é que o Tomás dorme cá? Ele não tem mãe? — perguntou-me uma noite, com os olhos marejados.
— Tem, filha. Mas agora precisa de nós. Vamos ajudá-lo juntos, está bem? — abracei-a com força, sentindo-me culpada por lhe roubar a atenção.
No bairro começaram os murmúrios. A dona Rosa do café dizia alto para quem quisesse ouvir:
— Aquela Mariana mete-se em tudo… Agora até cria filhos dos outros!
O pai do Tomás nunca apareceu. A Vera ligava de vez em quando, sempre apressada, sempre com desculpas novas: “O salão está quase pronto”, “Esta semana não posso ir aí”, “Prometo que vou buscar o Tomás no próximo mês”. Os meses passaram e ele ficou.
No Natal desse ano, sentei-me com as duas crianças à mesa pequena da sala. A Leonor ajudou-me a pôr o prato extra para o Tomás. Ele olhava para mim como se quisesse perguntar se aquilo era mesmo verdade: se eu era agora a mãe dele também.
Foi nessa noite que percebi que já não havia volta atrás. O Tomás era meu filho do coração.
Mas nem tudo era fácil. Havia dias em que ele chorava pela mãe, noites em que gritava “Quero a mamã!” até adormecer exausto nos meus braços. Havia momentos em que eu própria duvidava: estaria a fazer bem? Estaria a roubar-lhe a esperança de voltar para a mãe?
A minha relação com a Vera tornou-se tensa e distante. Um dia apareceu sem avisar, com um casaco novo e unhas impecavelmente pintadas.
— Vim ver o Tomás — disse, sem me olhar nos olhos.
Ele correu para ela, mas depois ficou parado à porta do quarto, como se não soubesse se devia abraçá-la ou esconder-se atrás de mim.
— Olha para ele… Está tão crescido — murmurou a Vera, mas logo desviou o olhar para o telemóvel.
— Vera, ele sente muito a tua falta — arrisquei dizer.
Ela encolheu os ombros.
— Mariana, eu não consigo ser mãe como tu és. Não tenho paciência para birras nem para trabalhos de casa. Eu amo-o à minha maneira… Mas não posso ser aquilo que ele precisa agora.
Fiquei furiosa e triste ao mesmo tempo. Quis gritar-lhe que ser mãe não era uma escolha fácil para ninguém, que todas tínhamos medo e dúvidas. Mas calei-me. O Tomás precisava de paz.
Com o tempo, ele foi chamando-me “mãe” sem hesitar. A Leonor aceitou-o como irmão e juntos criaram um mundo só deles: cabanas feitas de lençóis na sala, segredos sussurrados à noite, guerras de almofadas ao domingo de manhã.
Mas havia sempre quem julgasse:
— Não tens medo que um dia ela venha buscá-lo? — perguntava-me a minha vizinha Ana.
— Tenho — respondia eu. — Mas prefiro dar-lhe amor agora do que deixá-lo sozinho à espera de alguém que talvez nunca venha.
A minha mãe acabou por aceitar o Tomás como neto. No aniversário dele fez-lhe um bolo enorme e chorou quando ele lhe chamou “avó” pela primeira vez.
Anos depois, num daqueles fins de tarde em que tudo parece calmo e certo, sentei-me no jardim com os dois ao meu lado. O Tomás já era um rapazinho sério e sensível; a Leonor uma adolescente cheia de sonhos e dramas próprios.
A Vera ligou nesse dia. Disse que estava feliz com o salão, que tinha clientes famosas e finalmente sentia-se realizada. Perguntou pelo Tomás quase por obrigação.
Depois de desligar, olhei para os meus filhos e pensei em tudo o que tinha perdido e ganho ao longo daqueles anos: noites sem dormir, lágrimas escondidas na casa de banho, mas também risos partilhados e abraços apertados.
Será que fiz bem? Será que amar um filho do coração é suficiente para curar todas as feridas?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por amor?