“É por tua culpa que mal conseguimos chegar ao fim do mês” — Uma história de mágoas familiares que deixam cicatrizes profundas
— É por tua culpa que mal conseguimos chegar ao fim do mês! — gritou a minha mãe, com os olhos faiscantes, enquanto atirava a toalha da mesa para o chão. O som seco do tecido a bater no mosaico ecoou pela cozinha, mas o que realmente ficou a ressoar foi aquela frase. Senti o estômago a apertar-se, como se alguém me tivesse dado um murro. Fiquei ali, parada, com as mãos ainda húmidas de lavar a loiça, sem saber se devia responder ou simplesmente desaparecer.
Desde pequena que sempre tentei agradar à minha mãe. Chamo-me Mariana, sou de Setúbal, e cresci numa casa onde o silêncio era mais pesado do que qualquer discussão. O meu pai, António, era um homem calado, trabalhador, mas ausente. A minha mãe, Rosa, era o pilar da casa, mas também a sua tempestade. Quando as coisas corriam mal — e corriam muitas vezes — era sempre mais fácil encontrar um culpado do que uma solução.
— Não digas isso, mãe… — tentei, com a voz a tremer. — Eu faço o que posso. O Pedro também…
— O Pedro? — interrompeu ela, com um riso amargo. — O Pedro não passa de um sonhador. Tu é que escolheste esse caminho. Agora aguenta.
O Pedro é o meu marido. Conhecemo-nos na faculdade, ambos apaixonados por literatura, ambos com sonhos maiores do que a nossa conta bancária. Casámo-nos cedo, talvez cedo demais, e logo vieram os filhos: a Matilde, com os seus olhos curiosos, e o Tiago, sempre a correr pela casa como se fugisse de alguma coisa invisível.
A verdade é que nunca tivemos muito dinheiro. O Pedro dava aulas numa escola secundária, eu trabalhava numa biblioteca municipal. Quando a crise bateu à porta, fui das primeiras a ser dispensada. De repente, as contas começaram a acumular-se, e o frigorífico parecia cada vez mais vazio. A minha mãe, que sempre fez questão de lembrar que “no tempo dela” nunca faltou nada aos filhos, não perdoava o facto de eu precisar de ajuda.
— Se tivesses escolhido outro curso, se tivesses ouvido o que te disse… — continuava ela, como se cada palavra fosse uma pedra atirada ao meu orgulho.
— Mãe, por favor… — sussurrei, sentindo as lágrimas a quererem cair. — Eu só preciso de um pouco de compreensão.
Ela virou-me as costas, pegou no casaco e saiu de casa, deixando-me sozinha com o silêncio e com a sensação de que, mais uma vez, tinha falhado.
O Pedro entrou na cozinha pouco depois, com o Tiago ao colo.
— O que se passou? — perguntou, olhando para mim com preocupação.
— Nada… — menti, limpando as lágrimas à pressa. — Só uma discussão.
Ele não insistiu. Sabia que havia coisas que nem o amor conseguia curar.
Nessa noite, depois de deitar os miúdos, sentei-me na varanda e olhei para as luzes da cidade. Perguntei-me onde tinha errado. Será que devia ter escolhido outro caminho? Será que devia ter sido mais prática, menos sonhadora? Lembrei-me das palavras da minha mãe, repetidas vezes sem conta: “A vida não é feita de sonhos, Mariana. É feita de sacrifícios.”
Mas eu já não sabia distinguir onde acabavam os sonhos e começavam os sacrifícios.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: acordar cedo, preparar os miúdos para a escola, procurar trabalho, fazer contas à vida. A minha mãe deixou de me ligar. O silêncio dela era pior do que qualquer discussão. Sentia-me órfã, mesmo tendo mãe viva.
Uma tarde, ao ir buscar a Matilde à escola, encontrei a minha irmã mais nova, a Sofia. Ela sempre foi a preferida da minha mãe: estudou enfermagem, arranjou um emprego estável, casou com um engenheiro. A Sofia olhou para mim com pena disfarçada.
— A mãe está preocupada contigo — disse ela, baixando a voz. — Mas sabes como ela é…
— Preocupada? — ri-me, sem vontade. — Não parece.
— Ela só não sabe demonstrar. Sempre foi assim. Lembras-te quando o pai ficou doente? Ela também se fechou…
— Não é a mesma coisa, Sofia. Eu precisava dela agora. Só isso.
A Sofia suspirou e abraçou-me. Senti-me pequena, como quando éramos crianças e ela me pedia para brincar às escondidas só para não ficar sozinha.
Em casa, o Pedro tentava animar-me.
— Vai correr tudo bem, Mariana. Eu posso dar explicações à noite, tu podes tentar vender uns bolos…
— Não quero viver assim para sempre — respondi, exausta. — Não quero que os miúdos cresçam a ouvir discussões sobre dinheiro. Não quero ser como a minha mãe.
Ele ficou em silêncio, mas apertou-me a mão com força.
No fim do mês, a situação piorou. A renda atrasou-se, a conta da luz ameaçava ser cortada. Pedi ajuda à minha mãe, mais uma vez. Ela respondeu por mensagem: “Não posso ajudar sempre. Tens de aprender a desenrascar-te.”
Chorei durante horas. Senti raiva, tristeza, vergonha. Senti-me sozinha como nunca antes.
Foi então que decidi procurar ajuda fora da família. Fui ao centro paroquial, pedi apoio alimentar. Conheci a Dona Emília, uma senhora idosa que me ouviu sem julgar.
— Não tenhas vergonha, menina. Todos precisamos de ajuda às vezes. O importante é não desistir.
As palavras dela foram um bálsamo. Pela primeira vez em meses, senti-me compreendida.
Comecei a vender bolos caseiros no bairro. A Matilde ajudava-me a decorar as caixas, o Tiago era o meu “ajudante oficial”. O Pedro dava explicações até tarde. Aos poucos, as contas começaram a equilibrar-se. Não era uma vida fácil, mas era nossa.
A minha mãe continuava distante. No Natal, recusei o convite para ir lá jantar. Não queria ouvir mais acusações, não queria sentir-me um fardo. Passei a noite em casa, com o Pedro e os miúdos, a comer bacalhau simples e a rir das piadas do Tiago. Pela primeira vez em muito tempo, senti paz.
Meses depois, a minha mãe apareceu à porta. Trazia um bolo de laranja nas mãos e um olhar cansado.
— Posso entrar? — perguntou, hesitante.
Assenti em silêncio. Sentámo-nos à mesa, como tantas vezes antes, mas desta vez sem gritos nem acusações.
— Sei que fui dura contigo — disse ela, baixando os olhos. — Mas custa-me ver-te assim. Queria que tivesses uma vida melhor.
— Eu só queria sentir que estava tudo bem entre nós — respondi, com a voz embargada. — Que podia contar contigo.
Ela chorou. Eu também. Abraçámo-nos, como se tentássemos colar todos os pedaços partidos dos últimos meses.
A relação nunca voltou a ser igual, mas aprendi a proteger-me. Aprendi que às vezes as pessoas magoam-nos porque também estão magoadas. Aprendi que ser filha, mãe e mulher é um equilíbrio frágil, feito de escolhas difíceis e silêncios pesados.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que as palavras dos outros definam o nosso valor? E será que alguma vez conseguimos perdoar verdadeiramente quem mais nos magoou?