Dois Anos de Silêncio: O Grito Calado de uma Mãe Portuguesa
— Não me vais ligar nem no meu aniversário? — perguntei baixinho, quase sem voz, olhando para o telemóvel pousado na mesa da cozinha. O silêncio respondeu-me, como tem respondido nos últimos dois anos.
Chamo-me Clara, tenho 68 anos e moro sozinha num terceiro andar em Benfica. A minha filha, Mariana, não me fala desde aquele dia. Dois anos. Setecentos e trinta dias de ausência, de perguntas sem resposta, de noites em claro a tentar perceber onde errei.
Conheci a minha vizinha, Teresa, há pouco tempo. Ela é mais nova, mas tem um jeito maternal que me faz sentir menos só. Às vezes traz-me bolos ou chá e ficamos à conversa. Mas evito falar da Mariana. Não quero que a pena dela se some à minha.
Mas naquele fim de tarde, com o céu a escurecer cedo e o cheiro a castanhas assadas a entrar pela janela, não aguentei mais.
— Teresa, sabes… tenho uma filha. — A minha voz tremeu. — Não falo com ela há dois anos.
Ela pousou a chávena devagar.
— O que aconteceu, Clara?
Fechei os olhos. Vi-me de novo naquela sala pequena, Mariana de pé à minha frente, os olhos brilhantes de raiva.
— Mãe, não aguento mais! Sempre a controlar tudo, sempre a dizer como devo viver! — gritou ela nesse dia. — Eu sou adulta! Tenho direito às minhas escolhas!
Eu só queria protegê-la. Sempre quis. Depois do pai dela nos ter deixado — foi para o Algarve com outra mulher quando Mariana tinha dezasseis anos — fiquei sozinha com ela. Trabalhei em dois empregos para lhe dar tudo. Talvez tenha dado demais. Ou talvez tenha sufocado.
— Mariana, eu só quero o teu bem… — tentei dizer.
— O meu bem? Ou o teu controlo? — Ela atirou as chaves para cima da mesa. — Chega! Vou sair de casa. E não me procures.
E saiu mesmo. Não voltou para buscar nada. Nem um casaco, nem um livro da faculdade. Só silêncio.
Teresa ouviu-me em silêncio também. Depois pousou a mão na minha.
— Já tentaste ligar-lhe?
Sorri com amargura.
— Todos os dias no início. Depois todas as semanas. Agora… só nos aniversários e no Natal. Nunca responde.
A casa está cheia das coisas dela: fotografias na estante, um urso de peluche no quarto, livros de quando era pequena. Às vezes entro no quarto dela só para sentir o cheiro antigo dos cadernos e dos sonhos que tínhamos juntas.
No prédio, os vizinhos perguntam por ela.
— A Mariana já não vem cá? — pergunta a Dona Lurdes do rés-do-chão.
Sorrio e minto:
— Está muito ocupada com o trabalho…
Mas todos sabem que estou sozinha.
No supermercado, vejo mães com filhas a discutir sobre o preço das maçãs ou sobre qual iogurte comprar. Fico ali parada, a fingir que escolho batatas, mas na verdade estou a ouvir aquelas vozes familiares que já não tenho em casa.
No Natal passado pus dois pratos na mesa. Fiz o bacalhau como ela gosta, com broa e couves. Esperei até às dez da noite antes de aceitar que ela não vinha. Comi sozinha, em silêncio, a olhar para o lugar vazio à minha frente.
Às vezes penso em ir ter com ela ao Porto — sei que trabalha lá numa agência de publicidade porque uma amiga da faculdade dela me contou. Mas depois penso: e se ela me fechar a porta na cara? E se nunca mais quiser ver-me?
A minha irmã, Helena, diz-me para seguir em frente.
— Clara, tens de aceitar! A Mariana é adulta! Não podes viver presa ao passado!
Mas como se esquece uma filha? Como se apaga uma vida inteira de beijos no joelho magoado, de noites sem dormir à espera que ela chegasse da discoteca, de tardes no Jardim da Estrela a dar pão aos patos?
Às vezes culpo-me por tudo: por ter sido demasiado rígida, por ter dito palavras duras quando estava cansada do trabalho, por não ter percebido quando ela precisava só de um abraço e não de conselhos.
Outras vezes revolto-me:
— Porque é que ela não percebe que tudo o que fiz foi por amor? — grito para as paredes vazias.
Mas as paredes não respondem.
No outro dia encontrei uma carta antiga dela numa gaveta:
“Mãe,
Obrigada por tudo o que fazes por mim. Sei que às vezes sou difícil, mas amo-te muito.
Mariana”
Li aquela carta dezenas de vezes naquela noite. Chorei até adormecer com o papel na mão.
A solidão pesa mais ao fim do dia. Quando as luzes dos outros apartamentos se acendem e ouço risos e vozes atrás das paredes finas do prédio antigo.
Às vezes penso em vender tudo e ir viver para uma aldeia no Alentejo, onde ninguém me conhece e ninguém pergunta pela Mariana.
Mas depois lembro-me: e se ela um dia voltar? E se bater à porta e eu não estiver cá?
Teresa tenta animar-me:
— Porque não vais ao centro sénior? Há lá aulas de pintura, passeios…
Fui uma vez. Senti-me deslocada entre pessoas que falavam dos netos e das visitas dos filhos ao domingo.
No meu aniversário deste ano comprei um bolo pequeno na pastelaria da esquina. Acendi uma vela sozinha e fiz um desejo: “Que a Mariana me ligue”.
O telefone ficou mudo todo o dia.
À noite escrevi-lhe uma mensagem:
“Filha, faço 68 anos hoje. Tenho saudades tuas. Amo-te sempre. Mãe”
A mensagem ficou azul — entregue — mas nunca lida.
Às vezes sonho com ela: vejo-a entrar pela porta com um sorriso tímido, como quando era pequena e vinha pedir desculpa depois de uma birra.
Acordo sempre antes de lhe tocar.
A vida continua: vou ao mercado, pago as contas, vejo novelas na televisão para não pensar demasiado. Mas cada aniversário dela é uma ferida aberta; cada Natal é um eco do vazio.
Sei que errei em muitas coisas. Talvez tenha amado demais ou amado mal. Mas será possível amar uma filha “demais”?
Hoje sentei-me à janela a ver os miúdos a brincar no jardim lá em baixo. Uma menina caiu e correu para os braços da mãe. Senti uma dor aguda no peito — uma saudade física, quase insuportável.
Teresa veio visitar-me ao fim da tarde.
— Clara, tens de tentar perdoar-te — disse ela suavemente. — E talvez perdoar também a Mariana.
Fiquei a pensar nisso depois dela sair. Perdoar-me? Perdoar-lhe? Como se faz isso quando o silêncio pesa tanto?
Agora escrevo esta história porque talvez alguém aí desse lado entenda esta dor muda das mães portuguesas que amam demais e perdem os filhos para o mundo ou para os próprios erros.
Será que algum dia vou ouvir novamente a voz da Mariana? Será que existe perdão suficiente para reconstruir uma ponte entre nós?
E vocês? Já sentiram este vazio? Como se aprende a viver com ele?