Depois da Morte da Minha Sogra: O Peso das Palavras Não Ditas

— Não é para ti, Ana. Nunca foi — ouvi a voz da minha sogra, Dona Teresa, ecoar pela cozinha, enquanto eu tentava, pela milésima vez, acertar o ponto do arroz de pato que ela fazia como ninguém. O cheiro do forno misturava-se com o peso das palavras dela, e eu sentia o nó na garganta crescer.

Desde o primeiro dia em que entrei naquela casa, há mais de trinta anos, soube que nunca seria suficiente. O Manuel, meu marido, era o filho único, o orgulho dela. Eu era só a rapariga de Lisboa que lhe roubara o menino. Dona Teresa queria para ele uma mulher do Norte, trabalhadora, recatada, alguém que soubesse fazer broa e rezar o terço sem tropeçar nas palavras. Eu era licenciada em Letras, lia romances franceses e tinha ideias sobre o mundo que ela achava perigosas.

Lembro-me do primeiro Natal juntos. Ela olhou para a camisola que lhe ofereci — comprei-a com o meu primeiro ordenado — e disse, sem sequer sorrir: — Não gosto de azul-escuro. Fica-me mal à pele. — Manuel tentou disfarçar, mas eu vi o olhar de censura dele: “Devias ter sabido.” Senti-me pequena, deslocada, como se tivesse invadido um território sagrado.

Os anos passaram e eu fui aprendendo a calar-me. A sorrir quando me apetecia chorar. A aceitar os conselhos dela sobre como criar os meus filhos — “O Miguel precisa de mais disciplina, Ana!” — e a engolir em seco quando ela criticava o meu arroz doce: “A tua mãe não te ensinou a pôr casca de limão?”. Nunca me chamou filha. Nunca me abraçou.

A minha mãe dizia: — Tens de compreender, filha. Ela só quer o melhor para o Manuel. Mas eu sabia que não era só isso. Era como se Dona Teresa guardasse um rancor antigo contra mim, um ressentimento que eu nunca consegui decifrar.

Quando o Manuel ficou desempregado durante a crise de 2011, foi ela quem nos ajudou a pagar a renda durante meses. Mas nunca me deixou esquecer: — Se tivesses escolhido uma profissão decente… — dizia ao filho, mas olhando para mim. Eu sentia-me culpada por tudo: pelo desemprego dele, pelas notas medianas dos miúdos, até pelo cão que fugiu uma vez.

Houve momentos em que pensei em desistir. Em fazer as malas e voltar para Lisboa com os meus filhos. Mas ficava sempre. Por eles. Por ele. E porque, no fundo, ainda tinha esperança de ouvir um dia: “Ana, estou orgulhosa de ti.” Esse dia nunca chegou.

No último verão, Dona Teresa adoeceu. O cancro foi rápido e cruel. Fui eu quem ficou ao lado dela no hospital quando o Manuel não aguentava ver a mãe tão frágil. Fui eu quem lhe dava banho, quem lhe penteava o cabelo branco e lhe lia as notícias do jornal. Ela nunca agradeceu. Só uma vez me olhou nos olhos e disse: — Não precisavas de te incomodar tanto.

No dia do funeral, a casa encheu-se de vizinhos e familiares. Todos falavam da força dela, da mulher que nunca se vergou à vida difícil do campo, da mãe dedicada. Eu sentia-me invisível no meio daquela multidão de memórias partilhadas.

Depois do enterro, enquanto arrumava as coisas dela com o Manuel e os miúdos, encontrei uma caixa de cartas antigas no fundo do roupeiro. Havia cartas para o marido falecido, para amigas de infância e… uma carta para mim. O envelope estava fechado e tinha escrito apenas: “Para a Ana”.

As mãos tremiam-me quando abri aquela carta. Li devagar:

“Ana,

Se estás a ler isto é porque já não estou aí para te dizer cara a cara aquilo que nunca consegui dizer em vida. Sei que nunca te facilitei as coisas. Sei que fui dura contigo muitas vezes e que te fiz sentir menos do que merecias.

Queria-te pedir desculpa por isso. Não era por não gostar de ti — era por medo de perder o meu filho para outra mulher. Tu foste mais forte do que eu alguma vez fui. Criaste os meus netos com amor e paciência, cuidaste do Manuel quando ele precisou e até de mim quando já não tinha forças.

Nunca te chamei filha porque tinha medo de admitir que eras família. Mas és. Sempre foste.

Obrigada por tudo.
Teresa”

Sentei-me no chão do quarto dela e chorei como nunca tinha chorado antes. O Manuel encontrou-me ali e abraçou-me em silêncio. Pela primeira vez em trinta anos senti que aquele abraço era também dela.

Os dias seguintes foram estranhos — uma mistura de alívio e tristeza profunda. Pensei em todas as vezes que me calei para evitar discussões, em todos os jantares em que sorri apesar das críticas veladas, em todos os natais em que desejei ser outra pessoa só para agradar-lhe.

Pergunto-me agora se valeu a pena tanto esforço para conquistar alguém que só no fim reconheceu o meu valor. Mas talvez seja assim nas famílias portuguesas: dizemos pouco o que sentimos e carregamos demasiado tempo as palavras não ditas.

E vocês? Já sentiram que só depois da perda é que compreendemos verdadeiramente quem éramos uns para os outros? Será possível perdoar tudo aquilo que ficou por dizer?