Dei ao meu filho tudo o que tinha — ele triunfou e esqueceu-se de mim. Mas a vida dá voltas.

— Ricardo, tens a certeza que é isto que queres? — perguntei-lhe com a voz embargada, sentada à mesa da cozinha, as mãos calejadas apertando a chávena de café já frio.

Ele olhou-me nos olhos, com aquela determinação que sempre admirei e temi ao mesmo tempo. — Mãe, é agora ou nunca. Se não abrir o restaurante agora, nunca mais vou ter coragem. Só preciso daquele dinheiro que guardaste…

O silêncio caiu entre nós como um manto pesado. O dinheiro. As notas que fui juntando ao longo de trinta anos a trabalhar no armazém de têxteis e depois no de embalamento de alimentos. Horas extra, feriados perdidos, Natal longe da família porque o turno era meu. Tudo para ele. Para o Ricardo.

Lembro-me do dia em que nasceu. O parto difícil, a enfermeira a dizer-me para ter força. E eu tive. Sempre tive. O pai dele foi-se embora quando ele tinha três anos. Nunca mais deu notícias. Fiquei sozinha, mas nunca me permiti fraquejar. O Ricardo era tudo para mim.

— Mãe, prometo que te vou devolver tudo. E mais! Quando o restaurante der lucro, tu vais deixar de trabalhar naquele armazém horrível. Eu trato de ti.

Acreditei. Como podia não acreditar? Era meu filho.

Assinei os papéis no banco com as mãos a tremer. O gerente olhou-me com pena — ou talvez fosse só cansaço — e eu fingi não ver. Saí de lá mais leve e mais vazia do que nunca.

No início, tudo correu bem. O Ricardo ligava-me todos os dias:

— Mãe, hoje tivemos casa cheia! — dizia ele, entusiasmado.

Eu sorria sozinha na cozinha vazia, imaginando-o feliz, rodeado de clientes satisfeitos.

Mas depois… as chamadas começaram a ser menos frequentes. Quando ligava, era sempre apressado:

— Mãe, agora não posso falar. Estou cheio de trabalho.

E eu compreendia. Ou queria compreender.

Os anos passaram. O restaurante tornou-se famoso em Lisboa. Vi o nome do Ricardo nos jornais, nas revistas de gastronomia. Vi fotografias dele ao lado de políticos e artistas. Mas ele… ele já não vinha visitar-me ao Barreiro. No Natal mandava uma caixa com vinhos caros e um cartão assinado pela secretária.

As vizinhas perguntavam:

— Então, o teu filho agora é famoso! Deve tratar-te como uma rainha!

Eu sorria e mudava de assunto.

O armazém fechou quando fiz 62 anos. Deram-me uma indemnização pequena e um relógio barato. Fiquei em casa, sozinha com as minhas dores nas costas e as mãos deformadas pelo trabalho.

Um dia, decidi ir ao restaurante sem avisar. Vesti o melhor casaco que tinha e apanhei o barco para Lisboa. Quando cheguei lá, pedi para falar com o Ricardo.

O empregado olhou-me de cima a baixo:

— O senhor Ricardo está numa reunião importante. Não pode ser interrompido.

— Diga-lhe que é a mãe dele — insisti.

Ele desapareceu por uns minutos e voltou:

— O senhor Ricardo pede desculpa, mas está mesmo ocupado. Se quiser deixar um recado…

Saí dali com o coração apertado e os olhos cheios de lágrimas que me recusei a deixar cair na rua.

Durante meses não consegui dormir bem. Perguntava-me onde tinha falhado. Será que lhe dei demais? Será que devia ter sido mais dura?

Um dia, recebi uma carta do hospital: tinha de fazer exames ao coração. O médico foi direto:

— Dona Maria do Carmo, tem de abrandar o ritmo. O seu coração está cansado.

Sorri amargamente:

— O meu coração está cansado há muitos anos, doutor.

As vizinhas continuavam a perguntar pelo Ricardo. Eu inventava desculpas: “Está muito ocupado”, “Tem viajado muito”.

Até que um dia ouvi um rumor: o restaurante estava em dificuldades financeiras. Dívidas acumuladas, problemas com fornecedores…

Passaram-se semanas até receber um telefonema dele:

— Mãe…

A voz dele era diferente: cansada, insegura.

— Preciso de falar contigo.

Quando chegou a minha casa, parecia outro homem: mais magro, olheiras fundas.

— Perdi quase tudo — confessou-me entre lágrimas. — Fui arrogante… achei que podia tudo sozinho… Afastei toda a gente… até ti.

Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão como fazia quando era pequeno.

— Ricardo… és meu filho. Sempre serás. Mas doeu muito ver-te esquecer quem te ajudou a chegar onde chegaste.

Ele chorou no meu ombro como quando era criança e tinha pesadelos à noite.

Durante semanas ficou comigo em casa. Cozinhávamos juntos — ele ensinava-me receitas novas e eu mostrava-lhe como fazer arroz doce como antigamente.

Aos poucos, começou a reconstruir a vida: abriu um pequeno café no bairro, desta vez sozinho mas humilde, sem luxos nem pretensões.

As vizinhas voltaram a perguntar:

— Então, o Ricardo voltou?

Desta vez sorri com sinceridade:

— Voltou sim. E agora sabe o valor das coisas simples.

Hoje passo os dias entre o café do Ricardo e a minha casa modesta. Ele faz questão de me levar flores todas as semanas e nunca mais deixou de me ligar um só dia.

Às vezes olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente? Teria amado menos? Não sei se existe resposta certa para isto…

E vocês? Acham que uma mãe deve pôr limites ao amor pelos filhos? Ou será que o tempo acaba sempre por ensinar aquilo que nós não conseguimos?