Dei a Casa ao Meu Filho. Agora Moro Num Quarto Arrendado e Pergunto-me se Ele Ainda Me Ama
— Mãe, não podes continuar a viver assim. — A voz do Rui ecoava na minha cabeça, mesmo meses depois daquela conversa. — A casa é demasiado grande para ti sozinha. Eu e a Sofia precisamos de espaço para os miúdos. Tu ficas melhor num sítio mais pequeno, mais fácil de cuidar.
Na altura, sorri. Queria acreditar que ele tinha razão. Que era mesmo para o meu bem. Mas agora, deitada nesta cama estreita, com o colchão que range sempre que me viro, pergunto-me se fiz bem. O quarto cheira a mofo antigo e a comida alheia. As paredes são finas; ouço a Dona Emília tossir no quarto ao lado e o senhor António a ressonar como um camião. Não há cheiro de café pela manhã, nem os meus livros na estante. Nem sequer as cortinas são minhas.
Levanto-me devagar, sentindo as articulações protestarem. Penso na minha casa — ou melhor, na casa que era minha — com o chão de madeira encerado, as fotografias de família na parede, a varanda cheia de gerânios. Agora tudo pertence ao Rui e à Sofia. Eles mudaram tudo: pintaram as paredes de cinzento claro, trocaram os móveis antigos por coisas modernas do IKEA. Até o relógio da sala desapareceu.
Lembro-me do dia em que entreguei as chaves. O Rui abraçou-me com força, mas senti-o distante, como se já estivesse noutro lugar. — Vais ver que é melhor assim, mãe. — E eu quis acreditar.
A Sofia nunca gostou muito de mim. Sempre achei que me via como um peso, uma sombra do passado do Rui que ela queria apagar. Quando me visitava, olhava para tudo com ar crítico: — Ainda tens esta colcha? E estes bibelôs? — Eu sorria, fingindo não perceber o desdém.
Agora vejo-os pouco. O Rui liga-me uma vez por semana, às vezes menos. — Está tudo bem contigo? Precisas de alguma coisa? — pergunta sempre apressado, como se estivesse a cumprir uma obrigação.
— Está tudo bem, filho — respondo sempre. Não quero ser um fardo.
Mas não está tudo bem. Sinto falta dos netos, do barulho deles pela casa, das perguntas curiosas da Matilde: — Avó, porque é que as estrelas brilham? — Agora só os vejo nas fotografias que a Sofia publica no Facebook.
A Dona Emília bate à porta.
— Maria do Céu, vai tomar o pequeno-almoço? Fiz torradas.
— Já vou, obrigada.
Ela é simpática, mas não é família. Partilhamos a cozinha e às vezes conversamos sobre novelas ou sobre o preço do bacalhau. Mas falta-me o calor dos meus.
No Natal passado, esperei pelo convite do Rui até à véspera. Ele ligou às oito da noite:
— Mãe, este ano vai ser complicado… A Sofia está cansada e os miúdos estão constipados. Talvez para o ano…
Chorei sozinha nesse quarto frio, com uma fatia de bolo-rei comprado no supermercado e um copo de vinho barato.
Às vezes pergunto-me onde errei. Dei tudo ao Rui: tempo, amor, sacrifícios. Fui mãe solteira; trabalhei noites inteiras a costurar para lhe pagar os estudos. Nunca lhe faltou nada — nem amor, nem pão na mesa.
Recordo-me das noites em que ele chegava tarde da faculdade e eu aquecia sopa para ele. — Obrigado, mãe — dizia sempre com aquele sorriso tímido.
Agora parece tão distante.
Outro dia encontrei-o por acaso na rua. Estava com pressa; disse que ia buscar a Matilde à escola. Perguntei se queria tomar um café comigo.
— Não posso agora, mãe. Fica para outro dia.
Vi-o afastar-se e senti um vazio enorme dentro de mim.
À noite escrevi-lhe uma mensagem:
“Tenho saudades tuas.”
Ele respondeu só no dia seguinte:
“Também tenho saudades, mãe. Beijinhos.”
Fiquei a olhar para o telemóvel durante horas.
A Dona Emília diz que sou tola por esperar tanto dos filhos.
— Eles têm a vida deles agora. Temos de nos habituar à solidão — diz ela enquanto mexe o café.
Mas eu não quero habituar-me à solidão. Quero sentir-me útil, amada, parte de alguma coisa maior do que este quarto alugado com móveis velhos e paredes húmidas.
Outro dia tentei falar com o Rui sobre isso.
— Filho… Sinto falta de vocês. Sinto falta da casa…
Ele suspirou do outro lado da linha:
— Mãe, já falámos sobre isto. Não podes viver no passado. Tens de te adaptar.
— Mas eu sinto-me tão sozinha…
— Podes sempre arranjar um passatempo, fazer voluntariado… Conhecer pessoas novas.
Quis gritar: “Eu não quero pessoas novas! Quero a minha família!” Mas calei-me.
No domingo passado fui à missa e rezei por ele, pelos netos, até pela Sofia. Pedi força para aceitar esta nova vida.
Quando voltei ao quarto, encontrei uma carta da senhoria: vai aumentar a renda no próximo mês. O dinheiro da reforma mal chega para tudo; começo a pensar se terei de procurar outro lugar ainda mais pequeno.
À noite sonhei com a minha casa antiga: estava cheia de luz e risos de crianças. Acordei com lágrimas nos olhos.
Pergunto-me se o Rui alguma vez percebeu o tamanho do meu sacrifício. Se algum dia vai olhar para trás e ver tudo o que fiz por ele.
Será que ele ainda me ama? Ou sou apenas uma obrigação incómoda?
Às vezes penso em bater-lhe à porta sem avisar, aparecer com um bolo como fazia antigamente. Mas tenho medo de ser recebida com frieza ou indiferença.
A solidão pesa mais à noite. Olho para as fotografias antigas guardadas numa caixa: o Rui em pequeno no jardim da casa antiga; eu mais nova, cheia de esperança no olhar.
O tempo passa e sinto-me cada vez mais invisível.
Será este o destino das mães em Portugal? Damos tudo aos filhos e acabamos sozinhas num quarto arrendado?
Se pudesse voltar atrás… faria tudo igual? Ou teria guardado um pouco mais para mim?
E vocês? Acham que os filhos conseguem mesmo perceber o amor e o sacrifício das mães? Será que algum dia voltamos a ser prioridade na vida deles?