“Dá o apartamento ao teu irmão, afinal são família!” – a história que rasgou o meu coração e a minha família

– Mariana, tens de perceber… O teu irmão precisa mais do que tu. – A voz da minha mãe soava trémula, mas determinada, do outro lado da linha.

Fiquei em silêncio, sentada no sofá do meu pequeno T2 em Benfica, a olhar para as paredes que pintei com tanto carinho há apenas dois anos. O eco das palavras dela parecia encher a sala, sufocando-me.

– Mãe, estás a pedir-me para sair da minha casa? – perguntei, tentando controlar o tremor na voz.

– Não é isso, filha… Mas o Rui está com a vida feita num oito. A Andreia foi-se embora com as miúdas, ele perdeu o emprego… Não tem para onde ir. Tu és solteira, tens trabalho, consegues arranjar outro sítio. – O argumento dela era tão frio quanto lógico.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Sempre fui a filha responsável, a que nunca deu problemas, a que estudou, trabalhou e poupou cada cêntimo para comprar este apartamento. O Rui sempre foi o oposto: impulsivo, irresponsável, sempre à espera que alguém lhe resolvesse a vida.

– E eu? O que é que eu sou nesta família? – perguntei, já sem conseguir conter as lágrimas.

– Mariana, por favor… Somos família. Ajudamo-nos uns aos outros. – A voz dela era agora um sussurro carregado de culpa.

Desliguei o telefone sem responder. Fiquei ali sentada, com o telemóvel na mão, a olhar para as fotografias na estante: eu e o Rui em pequenos, abraçados na praia da Costa da Caparica; nós os quatro no Natal passado, ainda a sorrir, ainda inteiros.

Naquela noite não dormi. A cabeça fervilhava de pensamentos: seria eu egoísta por não querer abdicar do que conquistei? Ou seria injusto sacrificar-me mais uma vez pelo bem-estar do meu irmão?

No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os colegas notaram o meu ar ausente, mas ninguém perguntou nada. Ao fim da tarde, recebi uma mensagem do Rui: “Podemos falar?”. Hesitei antes de responder, mas acabei por aceitar encontrá-lo num café perto de casa.

Ele chegou atrasado, como sempre. Trazia o olhar cansado e as mãos enfiadas nos bolsos do casaco velho.

– Olha, mana… Sei que isto é uma chatice para ti. Mas estou mesmo encostado à parede. Não tenho onde ficar e as miúdas vêm passar fins-de-semana comigo. Não quero que vejam o pai a dormir no carro… – A voz dele falhava-lhe.

– Rui, eu percebo… Mas este apartamento é tudo o que tenho. Trabalhei anos para isto! – A minha voz saiu mais alta do que queria.

Ele baixou os olhos.

– Eu prometo que é só até arranjar trabalho e casa. Só preciso de um tempo para me reerguer…

Ficámos em silêncio durante minutos intermináveis. Olhei para ele e vi o miúdo traquina de antigamente, mas também vi o homem perdido em que se tinha tornado.

Quando voltei para casa nessa noite, encontrei a minha mãe à porta do prédio. Trazia um saco com comida e um olhar suplicante.

– Mariana, não faças isto ao teu irmão… – disse ela, quase em lágrimas.

– E tu não me faças isto a mim! – respondi, sentindo finalmente toda a mágoa a transbordar.

Ela tentou abraçar-me, mas afastei-me.

– Sempre fui eu a ceder! Sempre fui eu a pôr os outros à frente! Quando é que chega a minha vez?

Ela ficou ali parada, sem saber o que dizer. Subi as escadas a correr e tranquei-me em casa. Passei horas a chorar no chão da cozinha.

Nos dias seguintes, as chamadas e mensagens multiplicaram-se. Tias, primos e até vizinhos começaram a dar opiniões: “A Mariana devia ajudar o irmão”, “Coitado do Rui”, “Ela tem bom emprego, não lhe custa nada”. Senti-me julgada por todos, como se fosse um monstro egoísta.

No trabalho, comecei a falhar prazos e reuniões. O chefe chamou-me ao gabinete:

– Mariana, está tudo bem? Precisas de uns dias?

Quase lhe contei tudo ali mesmo, mas limitei-me a acenar com a cabeça e sair apressada.

Numa noite de sexta-feira, recebi uma mensagem da Andreia:

“Sei que estás sob pressão. O Rui tem de aprender a resolver os próprios problemas. Não te deixes esmagar por isso.”

Fiquei surpreendida com aquele gesto dela. Sempre achei que me culpava por apoiar pouco o irmão durante o divórcio deles.

No sábado seguinte, decidi ir até à praia sozinha. Sentei-me na areia fria da Caparica e deixei o vento salgado limpar-me as lágrimas. Pensei em tudo o que abdiquei para chegar onde estou: os jantares recusados para poupar dinheiro; as férias trocadas por horas extra; os sonhos adiados em nome da estabilidade.

Lembrei-me das vezes em que o Rui me pediu dinheiro emprestado e nunca devolveu; das discussões dos meus pais sobre ele; das noites em que ouvi a minha mãe chorar baixinho na cozinha.

Quando regressei a casa nesse dia, tomei uma decisão. Liguei ao Rui:

– Precisas de ajuda? Eu ajudo-te a procurar trabalho e casa. Mas não vou sair do meu apartamento.

Do outro lado ouvi um suspiro pesado.

– Ok… Percebo. Desculpa ter-te posto nesta posição.

Desliguei com o coração apertado mas aliviado. Pela primeira vez em anos senti que estava a escolher-me a mim própria.

A minha mãe ficou semanas sem me falar. No Natal desse ano, o ambiente era tenso; os olhares fugiam dos meus e os sorrisos eram forçados. O Rui acabou por arranjar um quarto num apartamento partilhado e um trabalho temporário numa loja de informática.

Aos poucos, as feridas começaram a sarar – mas ficaram cicatrizes profundas na nossa relação familiar. Ainda hoje sinto um peso no peito quando penso naquele telefonema fatídico.

Será egoísmo proteger aquilo que conquistámos com tanto esforço? Ou será apenas amor-próprio? Quantas vezes teremos de escolher entre nós e quem amamos?