Cuidar do Avô: Entre a Culpa e a Frustração que Não Consigo Largar
— Não quero tomar esse comprimido, Maria! — gritou o avô Manuel, a voz rouca e teimosa, enquanto eu segurava o copo de água com as mãos trémulas.
Senti o nó na garganta apertar. Já não sabia se era raiva, tristeza ou apenas cansaço. O relógio marcava sete da manhã e eu já estava exausta. Olhei para ele, deitado na cama onde passava quase todos os dias desde aquela maldita queda há dois anos. O quarto cheirava a creme hidratante e a uma tristeza antiga que parecia entranhar-se nas paredes.
— Avô, por favor… — tentei suavizar a voz, mas saiu-me um fio tenso. — Se não tomar o remédio, vai sentir dores outra vez.
Ele virou o rosto para a janela, onde o sol começava a desenhar sombras nas cortinas. — Dores já eu tenho todos os dias, Maria. Não preciso de mais nada para me lembrar que estou velho.
Aquelas palavras caíram sobre mim como uma sentença. Senti-me pequena, impotente. Lembrei-me de quando era criança e ele me levava ao Jardim da Estrela para ver os patos. Agora era eu quem lhe dava banho, trocava as fraldas, limpava as lágrimas e ouvia os lamentos.
A minha mãe, Teresa, entrou no quarto com passos apressados. — Já começou outra vez? — perguntou, sem disfarçar o aborrecimento. — Maria, tens de ser mais firme! — E virou-se para o meu avô: — Pai, não compliques!
O avô Manuel fechou os olhos e suspirou fundo. — Só quero descansar…
A minha mãe e eu trocámos olhares. Ela estava tão cansada quanto eu, mas nunca admitia. O meu pai fugia destas conversas; dizia que não aguentava ver o avô assim. O meu irmão, Luís, só vinha aos fins de semana e passava mais tempo ao telemóvel do que com o avô.
Às vezes sentia inveja dele. Da liberdade de sair de casa sem pensar se o avô tomou os remédios ou se precisa de ir à casa de banho. Da vida que eu própria tinha antes deste acidente: faculdade, amigos, sonhos… Agora tudo parecia distante.
Naquela manhã, depois de muita insistência e algumas lágrimas (minhas e dele), consegui que tomasse o comprimido. Fui à cozinha preparar-lhe o pequeno-almoço: papas de aveia e chá morno. Enquanto mexia a colher na panela, ouvi a minha mãe discutir ao telefone com a minha tia Helena.
— Não podes vir ajudar este fim-de-semana? — perguntava ela, a voz carregada de frustração. — Estamos exaustas! Não é justo ser sempre só nós!
Do outro lado só ouvia silêncios e desculpas. A tia Helena morava em Braga e dizia sempre que era longe demais para vir ajudar. Mas quando era para dividir a herança da casa do avô, já não era longe.
Voltei ao quarto com o tabuleiro nas mãos. O avô olhou para mim com olhos cansados.
— Desculpa, Maria… — murmurou ele. — Não quero ser um peso.
Sentei-me ao lado dele e segurei-lhe a mão. — Não é um peso, avô… Só queria que tudo fosse diferente.
Ele sorriu, um sorriso triste. — Eu também.
À tarde vieram os fisioterapeutas. O avô chorou durante os exercícios. Eu chorei depois, no banho, para ninguém ver.
À noite, sentei-me à mesa com os meus pais. O silêncio era pesado.
— Isto não pode continuar assim — disse finalmente a minha mãe. — Estamos todos a perder-nos nisto.
O meu pai olhou para mim: — Maria, tu tens 24 anos… devias estar a viver a tua vida.
— E quem cuida dele? — perguntei, sentindo a raiva crescer dentro do peito. — Vamos pô-lo num lar?
O silêncio respondeu por eles.
Fui para o meu quarto e liguei ao Luís.
— Preciso de ajuda — disse-lhe, sem rodeios.
Ele suspirou do outro lado da linha. — Eu sei… mas não sei se consigo lidar com isso, Maria.
— Achas que eu consigo? — gritei-lhe. — Achas que alguém consegue?
Desliguei antes que ele pudesse responder.
Naquela noite sonhei com o avô a correr atrás de mim no parque, como antigamente. Acordei com lágrimas nos olhos e uma sensação de perda irreparável.
Os dias passaram assim: rotinas pesadas, discussões familiares, momentos de ternura misturados com raiva e culpa. Às vezes odiava-me por desejar que tudo acabasse depressa; outras vezes sentia-me uma heroína por aguentar tanto tempo sem desmoronar.
Um domingo à tarde, enquanto lhe cortava as unhas dos pés (tarefa que ele odiava), ele olhou-me nos olhos:
— Maria… prometes que não me vais deixar sozinho?
Senti um aperto no peito tão forte que quase não conseguia respirar.
— Prometo… — menti.
Porque sabia que um dia teria de o deixar ir. Porque sabia que ninguém aguenta para sempre.
Agora escrevo estas palavras enquanto ele dorme ao meu lado, respirando devagarinho como um passarinho cansado. Pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoar-me por todas as vezes em que desejei fugir desta casa ou por todos os momentos em que lhe gritei por cansaço.
Será possível amar alguém tanto ao ponto de nos perdermos? Ou será que cuidar é também aprender a aceitar as nossas próprias limitações?
E vocês? Já sentiram esta mistura de amor e culpa por alguém da vossa família?