As Regras da Minha Mãe: Como a Tradição da Minha Sogra Quase Me Quebrou
— Não é justo, mãe! — gritei, a voz embargada, enquanto as lágrimas me queimavam o rosto. O silêncio caiu pesado sobre a mesa de jantar, onde a família estava reunida para celebrar o aniversário do meu filho mais novo, o Tiago. A minha sogra, Dona Emília, olhou-me com aquele olhar frio, de quem nunca me aceitou verdadeiramente, e respondeu, sem pestanejar:
— Justo? Justo é respeitar a tradição da família. O João é o primogénito do meu filho, é ele que herda o anel da família. Sempre foi assim.
O João, o meu filho mais velho, olhava para o prato, sem saber o que dizer. A minha filha, a Mariana, apertava-me a mão debaixo da mesa, os olhos cheios de lágrimas. O Tiago, o aniversariante, nem percebia o que se passava, entretido com o bolo que ainda não tinha sido cortado. E o meu marido, o Pedro, mantinha-se calado, como sempre, a olhar para o copo de vinho, incapaz de enfrentar a mãe.
Naquele momento, senti-me sozinha. Sozinha contra uma tradição que nunca me pertenceu, sozinha contra uma mulher que sempre fez questão de me lembrar que eu era apenas a mãe dos netos, nunca parte da família de verdade. Lembrei-me de todas as vezes em que Dona Emília fez questão de dar presentes só ao João, de como ignorava a Mariana, como se ela fosse invisível, e de como tratava o Tiago como um acidente de percurso.
A raiva misturava-se com a impotência. Eu sabia que, se levantasse a voz, seria acusada de ser ingrata, de não respeitar os mais velhos, de querer dividir a família. Mas, se me calasse, estaria a permitir que os meus filhos crescessem a sentir-se menos, a acreditar que não eram dignos de amor só porque não eram o primogénito.
— Mãe, por favor — tentei, a voz a tremer —, a Mariana e o Tiago também são teus netos. Não é justo que só o João receba o anel, nem que só ele seja chamado para ir contigo à missa, ou que só ele tenha direito a ir contigo à praia no verão.
Dona Emília ergueu o queixo, altiva:
— Não me ensines como se faz numa família portuguesa, menina. Sempre foi assim na nossa casa. O primogénito é o herdeiro. Se não gostas, paciência.
O Pedro finalmente levantou os olhos. Vi nele o conflito, a vergonha, a vontade de me apoiar e o medo de enfrentar a mãe. Ele sempre foi assim: bom marido, bom pai, mas incapaz de contrariar Dona Emília. Quantas vezes discutimos por causa disso? Quantas noites passei acordada, a pensar se valia a pena lutar contra uma parede?
Depois do jantar, fui para a cozinha, fingindo que precisava de arrumar. A Mariana veio atrás de mim, os olhos vermelhos.
— Mãe, porque é que a avó não gosta de mim? — perguntou, baixinho.
Senti o coração a partir-se. Como explicar a uma menina de dez anos que o amor da avó tem condições? Como justificar o injustificável?
— Não é isso, filha. A avó cresceu com ideias antigas. Mas tu és maravilhosa, e eu amo-te mais do que tudo.
Ela abraçou-me com força, e eu prometi a mim mesma que nunca deixaria que ela se sentisse menos do que o irmão.
Mas a verdade é que as coisas só pioraram. No Natal, Dona Emília trouxe um presente caro para o João — um relógio de ouro — e para a Mariana e o Tiago, apenas meias e um livro velho. O Pedro tentou disfarçar, mas eu vi a vergonha nos olhos dele. Depois do jantar, quando todos já estavam a dormir, ele sentou-se ao meu lado na cama e disse:
— Desculpa. Eu devia ter dito alguma coisa.
— Devias — respondi, fria. — Mas nunca dizes.
Ele ficou em silêncio. Eu sabia que ele amava os filhos, mas o medo de magoar a mãe era maior. E eu? Eu sentia-me cada vez mais sozinha, cada vez mais revoltada.
As discussões tornaram-se frequentes. A Mariana começou a fechar-se em si mesma, a evitar as reuniões de família. O Tiago, demasiado pequeno para perceber tudo, começou a perguntar porque é que a avó nunca lhe dava colo. E o João, coitado, sentia-se culpado por receber tudo sozinho.
Um dia, depois de mais uma discussão, o Pedro saiu de casa. Disse que precisava de pensar. Fiquei sozinha com as crianças, a tentar segurar tudo. A minha mãe ligava-me todos os dias, preocupada.
— Filha, não deixes que te destruam. Tu és forte. Os teus filhos precisam de ti.
Mas eu sentia-me fraca. Sentia que estava a perder tudo: o marido, a paz, a alegria dos meus filhos.
Foi então que tomei uma decisão. Liguei à Dona Emília e marquei um encontro. Fui ter com ela ao café da vila, as mãos a tremer.
— Dona Emília, eu não vim aqui para discutir. Vim pedir-lhe, de mãe para mãe, que trate os meus filhos com justiça. Eles não têm culpa das suas tradições. Eles só querem ser amados.
Ela olhou-me nos olhos, pela primeira vez sem arrogância.
— Eu também só queria ser amada pela minha sogra — disse, baixinho. — Mas ela nunca me aceitou. Talvez por isso seja tão dura contigo.
Ficámos em silêncio. Pela primeira vez, vi nela uma mulher ferida, não só uma sogra cruel. Mas isso não desculpava tudo.
— Dona Emília, a Mariana já não quer vir às festas de família. O Tiago sente-se rejeitado. O João sente-se culpado. Não acha que já chega?
Ela suspirou. — Vou tentar mudar. Mas não prometo nada.
Saí dali sem saber se tinha ganho ou perdido. Mas sentia-me mais leve por ter dito o que precisava.
O tempo passou. As coisas não mudaram de um dia para o outro, mas começaram a mudar. Dona Emília começou a trazer pequenos presentes para todos. Chamava a Mariana para ir ao mercado, levava o Tiago ao parque. O João continuava a ser o favorito, mas já não era tão evidente.
O Pedro voltou para casa. Pediu desculpa, prometeu tentar ser mais firme. Não foi fácil, mas fomos reconstruindo a nossa família, pedaço a pedaço.
Hoje, olho para trás e pergunto-me: valeu a pena lutar? Valeu a pena enfrentar a tradição, arriscar perder tudo para proteger os meus filhos? Talvez nunca saiba a resposta certa. Mas sei que, se não tivesse lutado, teria perdido a mim mesma.
E vocês, até onde iriam para proteger os vossos filhos? O que é mais importante: a tradição ou o amor?