As Palavras do Meu Pai Ecoam Agora: “Pai, Devia Ter-te Ouvindo”

— Não vás por aí, Mariana! — a voz do meu pai ecoava pelo corredor do novo apartamento, ainda com cheiro a tinta fresca. Eu já tinha a mão na maçaneta da porta, pronta para sair e explorar o bairro. — Não percebes que aqueles miúdos não são boa companhia?

Revirei os olhos, ignorando o tom preocupado dele. — Pai, não exageres! Só vou dar uma volta, não vou assaltar um banco! — respondi, tentando esconder a ansiedade de finalmente ter espaço para mim depois de anos num quarto apertado de residência universitária.

O apartamento era um sonho: dois quartos, sala ampla, varanda com vista para as traseiras do prédio. Para mim, parecia um palácio. Mas logo percebi que os vizinhos olhavam-nos de lado. Os miúdos dos prédios antigos passavam a vida a brincar na rua, riam-se de mim por ser “a menina do prédio novo”. Eu queria tanto pertencer que ignorei os avisos do meu pai.

Naquela tarde, sentei-me no muro com a Andreia e o Tiago. Eles fumavam cigarros roubados aos pais e falavam alto sobre tudo o que odiavam na escola. Senti-me incluída quando Andreia me passou um cigarro. Hesitei, mas fumei. O fumo queimou-me a garganta e tossi, mas sorri para não parecer fraca.

Quando voltei a casa, o meu pai estava à porta, braços cruzados. — Mariana, cheiras a tabaco. Achas que sou parvo?

— Não é nada! — menti, mas ele não acreditou. A minha mãe apareceu atrás dele, olhar cansado, como se já não tivesse forças para mais discussões.

— A tua filha acha que sabe tudo — disse ele para ela, como se eu não estivesse ali.

— Deixa-a, António. Ela tem de aprender sozinha — respondeu ela, resignada.

Fugi para o quarto e fechei a porta com força. Ouvia-os discutir baixinho na cozinha. O meu pai sempre quis o melhor para mim, mas nunca soube dizê-lo sem soar autoritário. Eu só queria liberdade.

Os meses passaram e fui-me afastando deles. Comecei a faltar às aulas para ir ao café com o grupo. Um dia, roubaram uma carteira à senhora da mercearia. Eu estava lá, mas não participei. Mesmo assim, quando a polícia apareceu, levaram-nos todos para a esquadra.

O meu pai chegou furioso. — Mariana! O que é que te passou pela cabeça? — gritou ele no átrio da esquadra.

— Eu não fiz nada! — chorei, mas ninguém acreditou em mim.

Durante semanas, ninguém me falou em casa. O silêncio era pior do que os gritos. A minha mãe chorava baixinho à noite. O meu pai olhava para mim como se eu fosse uma estranha.

No final do ano letivo, chumbei a três disciplinas. O meu pai perdeu a paciência.

— Se queres estragar a tua vida, força! Mas não contes comigo para te apoiar nas tuas asneiras!

Saí de casa aos 18 anos, convencida de que sabia tudo sobre o mundo. Fui viver com a Andreia para um quarto minúsculo em Benfica. Trabalhei num call center durante o dia e estudava à noite, mas nunca consegui acabar o curso.

Os anos passaram depressa. Andreia engravidou e foi viver com o namorado. Tiago foi preso por tráfico de droga. Eu fiquei sozinha.

Tentei ligar ao meu pai várias vezes, mas ele raramente atendia. Quando atendia, era seco:

— Precisas de dinheiro?

— Não… só queria falar contigo.

— Estou ocupado.

A minha mãe ligava-me às escondidas:

— O teu pai sente a tua falta, mas é orgulhoso demais para admitir.

Eu também era orgulhosa demais para pedir desculpa.

Aos 27 anos, perdi o emprego no call center quando a empresa fechou. Fiquei sem dinheiro para pagar o quarto e tive de voltar para casa dos meus pais.

O apartamento já não cheirava a tinta fresca. As paredes estavam manchadas de humidade e os móveis gastos pelo tempo.

O meu pai estava mais velho, cabelo grisalho e olhar cansado. Quando entrei em casa com as malas na mão, ele limitou-se a dizer:

— Voltaste.

— Só até arranjar trabalho — respondi, envergonhada.

Durante semanas mal falámos. Ele saía cedo para trabalhar na oficina e voltava tarde. A minha mãe tentava fazer de ponte entre nós:

— O teu pai preocupa-se contigo…

— Ele nunca diz isso — respondia eu.

Uma noite ouvi-o falar ao telefone com um amigo:

— A Mariana voltou… Não sei se fiz bem em ser tão duro com ela…

Senti um nó na garganta. Quis ir ter com ele, pedir desculpa por tudo, mas faltou-me coragem.

Arranjei trabalho numa loja de roupa e comecei a reconstruir a minha vida aos poucos. Mas sentia-me vazia por dentro. Via os pais das minhas colegas irem buscá-las ao trabalho ou levá-las ao médico quando estavam doentes. O meu pai nunca fez isso comigo depois da adolescência.

Um dia adoeci com uma gripe forte e fiquei de cama três dias. A minha mãe trouxe-me chá e cobertores, mas foi o meu pai quem entrou no quarto à noite e me tapou melhor sem dizer uma palavra.

— Pai… — chamei baixinho.

Ele parou à porta.

— Desculpa… por tudo.

Ele ficou em silêncio durante uns segundos eternos antes de responder:

— Eu só queria proteger-te…

Chorei como uma criança naquele momento. Senti todo o peso dos anos perdidos entre nós.

Hoje vivo sozinha num pequeno T1 em Almada. O meu pai já não está cá; partiu há dois anos depois de um enfarte súbito. Guardo as suas ferramentas numa caixa no armário e às vezes sento-me na varanda a ouvir as gravações antigas da sua voz nos aniversários ou nos Natais.

Agora percebo: tudo o que ele dizia era amor disfarçado de preocupação e medo de me perder para um mundo que ele sabia ser cruel.

Se pudesse voltar atrás teria ouvido mais vezes as suas palavras em vez de fugir delas. Será que todos só percebemos o valor dos conselhos dos nossos pais quando já é tarde demais? E vocês? Já sentiram esse arrependimento silencioso?