Abandonada à Porta da Maternidade: O Regresso de Miguel e a Dor do Perdão
— Vais mesmo deixar-me agora? — perguntei, com a voz embargada, sentindo o peso do meu ventre e o desespero a apertar-me o peito.
Miguel não me olhou nos olhos. Estava de costas, a enfiar à pressa as roupas na mala. O som do fecho a correr ecoou pelo quarto como um tiro. — Não consigo, Inês. Não estou preparado para isto. Preciso de tempo. — As palavras caíram como pedras, frias e definitivas.
Fiquei ali, parada, com uma mão na barriga já enorme e outra a agarrar o encosto da cadeira, como se pudesse impedir o mundo de desabar. O relógio marcava duas da manhã. Lá fora, Lisboa dormia. Cá dentro, o meu mundo acabava de acordar para um pesadelo.
Quando a porta bateu, não chorei. Não naquela noite. Passei horas sentada no escuro, a sentir os pontapés do Tomás dentro de mim, a perguntar-me como é que alguém que dizia amar podia fugir assim, no momento em que mais precisava dele.
Os dias seguintes foram um borrão de telefonemas não atendidos, mensagens ignoradas e silêncios ensurdecedores. A minha mãe apareceu em casa com uma mala cheia de comida e um olhar que misturava pena e raiva. — Sempre te disse que esse rapaz não era homem para ti, Inês. Mas agora tens de ser forte pelo teu filho.
O parto foi solitário. Lembro-me do cheiro a desinfetante do hospital de Santa Maria, das luzes brancas e do suor frio na testa. O grito que dei quando Tomás nasceu foi mais do que dor física; foi um grito de libertação e de medo. Quando o médico me pôs aquele ser pequenino nos braços, chorei tudo o que não tinha chorado antes.
Os meses seguintes foram uma luta diária. Entre fraldas, noites sem dormir e contas por pagar, aprendi a ser mãe e pai ao mesmo tempo. Voltei ao trabalho na papelaria do bairro assim que pude. A dona Rosa foi um anjo, deixando-me levar o Tomás para lá quando não tinha com quem o deixar.
A minha mãe ajudava como podia, mas também ela tinha os seus problemas: o meu pai estava doente e o dinheiro nunca chegava para tudo. Os vizinhos cochichavam quando me viam sozinha com o carrinho de bebé. — Coitada da Inês, tão nova e já assim — ouvi mais vezes do que gostaria.
Durante três anos, Miguel foi um fantasma. Não ligou no aniversário do Tomás, nem no Natal, nem sequer quando soube pelo Facebook que o nosso filho esteve internado com bronquiolite. Eu dizia a mim mesma que estava melhor sem ele, mas à noite, quando Tomás adormecia no meu colo, sentia uma solidão tão funda que parecia não ter fundo.
Até ao dia em que ele apareceu à porta.
Era uma tarde chuvosa de março. O Tomás estava a desenhar no chão da sala quando ouvi a campainha. Abri a porta e vi Miguel: mais magro, barba por fazer, olhos vermelhos. — Inês… — disse ele, quase num sussurro. — Preciso falar contigo.
O meu corpo ficou rígido. Senti raiva, medo e uma estranha vontade de chorar tudo outra vez. — O que é que queres? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ele olhou para o Tomás e depois para mim. — Sei que não mereço nada… Mas preciso pedir-te perdão. Fui um cobarde. Fugi porque tive medo de falhar convosco. Passei estes anos todos a pensar em vocês… Por favor, deixa-me tentar ser pai do nosso filho.
O Tomás olhou para ele com curiosidade inocente. — Quem é este senhor, mãe?
Senti um nó na garganta. — É… é um amigo da mãe.
Miguel ajoelhou-se ao nível do Tomás e tirou um carrinho pequeno do bolso. — Olá, campeão. Eu sou o Miguel.
O Tomás sorriu timidamente e pegou no brinquedo.
Durante semanas, Miguel tentou reaproximar-se. Mandava mensagens todos os dias, perguntava pelo Tomás, oferecia-se para ajudar com as compras ou ir buscá-lo à creche. A minha mãe ficou furiosa quando soube. — Agora que já fizeste tudo sozinha é que ele aparece? Não te deixes enganar outra vez!
Eu própria não sabia o que sentir. Parte de mim queria gritar-lhe tudo: as noites em claro, as lágrimas escondidas na almofada, o medo constante de não ser suficiente para o nosso filho. Outra parte queria acreditar que as pessoas mudam.
Uma noite, depois de adormecer o Tomás, sentei-me com Miguel na cozinha. A chuva batia nas janelas e havia um silêncio pesado entre nós.
— Porque voltaste mesmo? — perguntei finalmente.
Ele passou as mãos pelo cabelo e suspirou. — Estive perdido, Inês. Fui viver para o Porto com uns amigos, tentei esquecer tudo… Mas não consegui fugir de mim próprio. Vi uma foto tua com o Tomás no Facebook e percebi que estava a perder tudo o que importava.
— E achas que basta apareceres agora para tudo ficar bem? — A minha voz saiu mais alta do que queria.
— Não… Sei que não mereço perdão. Só quero tentar ser melhor pai do que fui marido.
Ficámos ali sentados muito tempo sem dizer nada. No fundo, eu sabia que perdoar não era esquecer; era aceitar as cicatrizes e decidir se queria viver com elas ou não.
Os meses passaram devagarinho. Miguel começou a levar o Tomás ao parque aos fins-de-semana, ajudava nas tarefas da escola e até ficou com ele quando tive uma gripe forte em novembro. Vi no olhar do meu filho uma alegria nova; finalmente tinha alguém com quem brincar à bola ou construir legos até tarde.
Mas também vi as minhas próprias feridas a abrirem-se outra vez: cada vez que Miguel chegava atrasado ou esquecia um recado importante, sentia medo de voltar a ser abandonada.
A minha mãe continuava desconfiada e os vizinhos agora cochichavam ainda mais: — Olha quem voltou… Será que ela vai cair outra vez?
Numa noite fria de dezembro, depois de pôr o Tomás na cama, Miguel apareceu na sala com um envelope na mão.
— Inês… Queria pedir-te uma coisa — disse ele, nervoso.
— O quê?
— Gostava de voltar para casa… Para junto de vocês os dois.
Fiquei sem palavras. Olhei para ele e vi nos seus olhos um misto de esperança e medo.
— Não sei se consigo confiar em ti outra vez — confessei finalmente.
Ele baixou a cabeça. — Eu percebo… Só quero uma oportunidade para provar que mudei.
Naquela noite não dormi. Fiquei horas a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha passado sozinha: as consultas médicas sem companhia, os aniversários em silêncio, as noites em claro com febres altas e choros intermináveis.
Mas também pensei no sorriso do Tomás quando via o pai chegar à porta da escola; na forma como Miguel agora me olhava com respeito e humildade; na possibilidade de reconstruir uma família — mesmo cheia de remendos e cicatrizes.
No dia seguinte sentei-me com Miguel à mesa da cozinha.
— Podes voltar… Mas há condições: quero respeito acima de tudo; quero verdade; quero saber que posso contar contigo nos maus momentos e não só nos bons.
Ele sorriu pela primeira vez em muito tempo e prometeu tentar todos os dias ser digno dessa confiança.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela rapariga assustada há três anos atrás. Sei que perdoar não é esquecer nem apagar o passado; é escolher viver apesar dele.
Às vezes pergunto-me: será possível reconstruir algo depois de tanta dor? Ou será que algumas feridas nunca fecham verdadeiramente? E vocês… já conseguiram perdoar alguém assim?