A Nossa Palavra Secreta: Entre o Medo e a Esperança de Mãe e Filha
— Mãe, posso ir ao quarto da Inês estudar? — perguntou a Mariana, com aquela hesitação na voz que só uma mãe reconhece. O relógio marcava quase oito da noite, a chuva batia forte nas janelas do nosso apartamento em Almada, e eu sentia o peso do dia inteiro nos ombros.
Olhei para ela, tentando decifrar o que se escondia por trás dos olhos castanhos. Mariana tinha 15 anos, aquela idade em que tudo é urgente e secreto, mas havia algo diferente naquele pedido. — Claro, filha. Só não voltes tarde, está bem? — respondi, tentando soar despreocupada.
Ela sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos. Antes de sair, virou-se para mim e disse baixinho: — Se eu te mandar mensagem com a palavra “farol”, liga-me logo, está bem? — Senti um arrepio. Era a nossa palavra secreta, inventada numa tarde de verão, quando falávamos sobre perigos e como pedir ajuda sem levantar suspeitas. Nunca pensei que fosse precisar dela.
A noite avançou devagar. Tentei concentrar-me no trabalho remoto, mas a cabeça estava longe. O telemóvel vibrava com notificações do grupo de família — a minha irmã Ana a reclamar do trânsito na Ponte 25 de Abril, o meu pai a perguntar se já tínhamos jantar — mas nada me distraía da inquietação.
De repente, uma mensagem: “Farol”. Só isso. O coração disparou. Liguei imediatamente.
— Mariana? — sussurrei assim que atendeu.
— Mãe, vem buscar-me agora. Por favor. — A voz dela tremia.
— Estou a sair. Onde estás?
— No prédio da Inês, mas não subas. Espero-te à porta.
Vesti o casaco à pressa, nem senti o frio da rua. O caminho até ao prédio da Inês pareceu interminável. Quando cheguei, Mariana estava encostada à parede, braços cruzados, olhos vermelhos.
No carro, o silêncio era pesado. Só quando chegámos a casa é que ela falou:
— Mãe… havia lá um rapaz estranho. Ele não era amigo da Inês. Começou a fazer perguntas estranhas, a dizer coisas que me assustaram. Eu disse que precisava de ir à casa de banho e mandei-te a mensagem.
Senti uma mistura de alívio e raiva — alívio por ela estar bem, raiva por não poder protegê-la sempre.
— Fizeste bem em usar a nossa palavra secreta. Estou tão orgulhosa de ti — disse-lhe, abraçando-a com força.
Mas aquela noite foi só o início de uma tempestade maior. Nos dias seguintes, Mariana fechou-se ainda mais no quarto. Não queria falar sobre o que tinha acontecido. Eu tentava puxar conversa ao jantar:
— Como correu a escola hoje?
— Normal — respondia ela, sem levantar os olhos do prato.
O meu marido, Rui, tentava ser mais prático:
— Mariana, tens de aprender a defender-te. Não podes fugir sempre dos problemas.
Ela explodia:
— Não percebes nada! Não era um problema qualquer!
As discussões tornaram-se frequentes. Rui achava que eu era demasiado protetora; eu achava que ele era insensível. A tensão entre nós crescia ao ponto de quase não nos falarmos à noite.
Uma tarde, recebi um telefonema da escola: Mariana tinha faltado a duas aulas sem avisar. O meu coração apertou-se de novo.
— Mariana, onde estiveste hoje de manhã?
Ela hesitou:
— Fui dar uma volta sozinha. Precisava de pensar.
— Pensar no quê? — perguntei suavemente.
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias:
— Tenho medo de voltar à escola. Tenho medo de encontrar aquele rapaz outra vez.
Sentei-me ao lado dela na cama:
— Filha, não tens de passar por isto sozinha. Podemos falar com a escola, com os pais da Inês… Com quem precisares.
Ela chorou no meu ombro como quando era pequena. Senti-me impotente e ao mesmo tempo grata por ela ainda confiar em mim para partilhar o medo.
Decidimos juntas falar com a diretora da escola e com os pais da Inês. Descobrimos que o tal rapaz era primo afastado da Inês e já tinha causado problemas noutras escolas. A escola tomou medidas para garantir que ele não voltaria a aparecer.
Mas as feridas ficaram. Mariana começou a ter ataques de ansiedade antes de sair de casa. As noites eram passadas em claro, ouvindo-a chorar baixinho no quarto ao lado.
Rui tentou aproximar-se:
— Mariana, queres ir correr comigo amanhã cedo? Ajuda a limpar a cabeça.
Ela acenou que sim pela primeira vez em semanas. Aos poucos, começou a recuperar alguma confiança — mas nunca mais foi a mesma.
Eu também mudei. Passei a observar mais os silêncios do que as palavras ditas. Aprendi que às vezes um olhar ou uma mensagem pode ser um grito por ajuda.
A nossa palavra secreta continua viva entre nós — agora também com o Rui incluído no pacto silencioso de proteção mútua.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes ignoramos os sinais dos nossos filhos? Quantas vezes achamos que é só drama de adolescente? E se naquela noite eu não tivesse atendido o telefone?
Talvez nunca possamos proteger totalmente quem amamos do mundo lá fora. Mas podemos estar atentos aos pequenos sinais — às palavras secretas — que pedem socorro no meio do barulho dos dias.
E vocês? Já ouviram algum pedido silencioso vindo de quem mais amam? Conseguem reconhecer o vosso próprio “farol” no meio da tempestade?