“A minha filha disse que não quer que eu tome conta do meu neto”: Porque dizem que sou antiquada

— Mãe, precisamos de conversar. — A voz da Leonor tremia, mas os olhos estavam firmes, quase duros. Eu estava a mexer o arroz na panela, o cheiro do refogado a encher a cozinha, e o coração a bater mais depressa do que devia. Sabia que vinha aí qualquer coisa séria.

— Diz, filha. — Tentei sorrir, mas a colher tremeu-me na mão.

Ela respirou fundo, olhou para o chão e depois para mim. — Eu e o Tiago achamos melhor que não fiques mais com o Martim durante a semana.

O arroz queimou-se naquele instante. O cheiro a tostado misturou-se com o nó na garganta. — Mas… porquê? Fiz alguma coisa de mal?

Leonor hesitou. — Não é isso, mãe. Só… achamos que tens umas ideias muito antigas sobre como se deve educar uma criança. E eu não quero que o Martim cresça assim.

Fiquei sem palavras. Senti-me velha, inútil, posta de lado. O Martim era o meu raio de sol desde que nasceu. Desde que o Tiago arranjou trabalho em Lisboa e a Leonor voltou ao emprego depois da licença de maternidade, era eu quem ficava com ele todos os dias. Levava-o ao parque, contava-lhe histórias, ensinava-lhe canções antigas — as mesmas que a minha mãe me cantava quando eu era pequena em Vila Nova de Gaia.

— Antigas? — repeti, quase num sussurro. — O que é que eu fiz?

Ela suspirou, impaciente. — Mãe, tu ralhaste com ele porque ele não quis comer sopa. Disseste-lhe que os meninos malcomportados vão para o quarto escuro. Isso não se diz! E depois… proibiste-o de ver televisão porque ele fez birra. Hoje em dia não se faz assim.

Senti-me corar de vergonha e raiva. — Sempre eduquei assim vocês os dois! E olha que não saíram mal…

— Os tempos mudaram, mãe! — interrompeu ela, já com lágrimas nos olhos. — Eu quero que o Martim cresça sem medos, sem ameaças. Quero que ele saiba exprimir as emoções dele sem ser castigado por isso.

O silêncio caiu entre nós como uma porta fechada à chave. O arroz queimado já nem importava. Só conseguia pensar no vazio dos meus dias sem o Martim.

— Então… não queres mais a minha ajuda? — perguntei, com a voz embargada.

Ela abanou a cabeça devagarinho. — Quero-te por perto, mãe. Mas não assim. Não se conseguires mudar.

Fui para o quarto e fechei a porta devagarinho para ela não ouvir o soluço que me escapou. Sentei-me na cama e olhei para as mãos: mãos de avó, cheias de rugas e histórias, agora inúteis.

Lembrei-me da minha mãe, a Dona Amélia, mulher dura mas justa. Quando eu era pequena e fazia asneiras, ela punha-me de castigo na varanda fria ou tirava-me o pão com manteiga ao lanche. Nunca achei que fosse crueldade; era assim que se aprendia a ser gente. E eu cresci direita, trabalhadora, honesta.

Mas agora… será que estava errada? Será que o mundo mudou tanto assim?

Naquela noite não dormi. Oiço o Tiago chegar tarde do trabalho e falar baixinho com a Leonor na sala. Oiço-os discutir sobre mim — sim, sobre mim! — como se eu fosse um problema para resolver.

No dia seguinte tentei falar com ela outra vez.

— Leonor… posso tentar fazer diferente. Só preciso que me expliques como é suposto fazer agora.

Ela olhou para mim com ternura e cansaço. — Mãe, não é fácil desaprender tudo aquilo que aprendeste uma vida inteira…

— Mas posso tentar! — insisti.

Ela sorriu um bocadinho, mas percebi logo que não acreditava muito em mim.

Os dias seguintes foram um vazio enorme. Acordava cedo por hábito, mas já não havia risos nem choros de criança pela casa. O Martim vinha só aos fins-de-semana, sempre com os pais por perto, atentos ao que eu dizia ou fazia.

Uma tarde sentei-me no banco do jardim em frente ao prédio e vi outras avós com os netos: uma dava bolachas escondidas à menina de tranças; outra ralhava baixinho com um rapazito traquina; outra ainda contava histórias do tempo da escola primária em Santa Maria da Feira.

Será que todas estavam erradas? Ou será que só eu é que já não tinha lugar neste mundo novo?

Comecei a reparar nas conversas das mães mais novas no café: falavam de parentalidade positiva, de limites sem castigos, de emoções validadas e outras palavras caras que nunca ouvi em casa da minha mãe.

Uma vez tentei perguntar à Leonor:

— O que é isso da parentalidade positiva?

Ela explicou pacientemente: — É educar sem medo, mãe. É explicar as coisas em vez de ameaçar ou castigar. É ouvir o Martim quando ele está zangado ou triste e ajudá-lo a perceber o que sente.

— Mas… e se ele fizer birra? Se atirar tudo ao chão?

— Aí sento-me ao lado dele e espero que passe. Depois conversamos sobre o que aconteceu.

Fiquei calada. Não sabia se era capaz de tanta paciência.

O tempo foi passando e fui-me afastando deles sem querer. O Tiago começou a trazer o Martim à natação ao sábado e já nem subiam cá acima para lanchar comigo. A Leonor ligava menos vezes; dizia sempre “estamos ocupados”, “o Martim está cansado”, “fica para outro dia”.

Senti-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de brinquedos arrumados e fotografias antigas nas paredes.

Um dia recebi uma mensagem da minha irmã mais nova, a Teresa:

“Ouvi dizer pela Leonor que andas triste… Queres vir passar uns dias comigo ao Porto?”

Fui sem pensar duas vezes. Precisava de sair dali antes de me afundar ainda mais na tristeza.

Na casa da Teresa havia barulho, gargalhadas dos sobrinhos-netos adolescentes, discussões sobre futebol e política à mesa do jantar. Senti-me viva outra vez.

Uma noite contei-lhe tudo:

— Acham-me antiquada… Já não sirvo para nada.

A Teresa riu-se:

— Olha que disparate! As mães novas acham sempre que sabem tudo melhor… Mas também têm medo de errar. Tu só tens de mostrar à Leonor que ainda és capaz de aprender coisas novas.

— E se eu não conseguir? — perguntei baixinho.

Ela apertou-me a mão: — Então ama-os à tua maneira. Mas nunca deixes de tentar entender o mundo deles.

Voltei para casa com coragem renovada. Liguei à Leonor:

— Filha, gostava de aprender convosco como se faz agora… Posso ir convosco ao parque este domingo?

Ela hesitou um segundo antes de responder:

— Claro, mãe… O Martim vai gostar.

No domingo levei um saco cheio de bolachas caseiras (sem açúcar, como ela pediu) e sentei-me no banco do parque a ver o Martim brincar com outros meninos. Quando ele caiu e começou a chorar, resisti à vontade de dizer “não foi nada!” ou “os meninos grandes não choram”. Em vez disso sentei-me ao lado dele:

— Doeu muito? Queres um abraço da avó?

Ele atirou-se para os meus braços e chorou mais um bocadinho antes de sorrir outra vez.

A Leonor olhou para mim com surpresa e orgulho nos olhos.

Nesse dia percebi: talvez nunca seja uma avó moderna perfeita, mas posso ser uma avó presente — se estiver disposta a aprender todos os dias.

Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes nos fechamos no nosso mundo por medo de mudar? E vocês? Já sentiram que ficaram para trás numa família ou tiveram medo de perder alguém por não saber acompanhar os tempos?