Os Gritos Infinitos do Apartamento 3B: O Segredo que Abalou o Bairro

— Outra vez, Ana? Não consegues dormir? — sussurrou a minha mãe, encostada à porta do meu quarto, enquanto eu me encolhia debaixo dos lençóis, os olhos abertos no escuro.

— Mãe, ouviste? Ele está a chorar outra vez… — respondi, a voz embargada pelo medo e pela impotência. O relógio marcava três da manhã e, pela quarta noite seguida, o choro ecoava pelo prédio antigo da Rua das Amoreiras. Vinha do 3B, o apartamento onde ninguém entrava nem saía há meses, exceto aquela mulher de olhar vazio e passos apressados.

A primeira vez que ouvi os gritos, pensei que fosse um pesadelo. Mas não era. Era real. E era constante. O bairro inteiro sabia, mas ninguém falava alto sobre isso. Apenas cochichos nas escadas, olhares trocados no elevador.

No dia seguinte, ao sair para o trabalho, cruzei-me com o Sr. Manuel, o porteiro.

— Bom dia, menina Ana. Dormiu bem? — perguntou ele, mas o olhar denunciava que sabia da resposta.

— Não muito… O menino do 3B… — comecei, mas ele interrompeu-me.

— Não te metas nisso, filha. Já fui bater à porta. Ninguém atende. A mãe dele diz que está tudo bem. — O Sr. Manuel baixou a voz. — Mas eu sei que não está.

Durante semanas, tentei ignorar. Mas cada vez que ouvia aquele choro — um lamento longo, desesperado — sentia um nó no estômago. Comecei a evitar passar pelo terceiro andar. No supermercado, a vizinha D. Rosa comentou:

— Aquela mulher do 3B… nunca sorri. E o menino… nunca o vi na rua.

As conversas multiplicavam-se: “Será doença? Será castigo?” Mas ninguém fazia nada. Até ao dia em que decidi agir.

Subi as escadas devagar, o coração a bater descompassado. Bati à porta do 3B. Silêncio. Bati mais forte.

— Quem é? — uma voz rouca respondeu do outro lado.

— Sou a Ana, sua vizinha… Precisa de ajuda? Ouvi… ouvi o seu filho a chorar…

A porta ficou fechada. Do outro lado ouvi passos apressados e depois… silêncio absoluto. O choro parou naquela noite. Mas voltou na seguinte, mais alto do que nunca.

Contei à minha mãe. Ela disse para não me meter em problemas alheios. “Não sabemos o que se passa lá dentro”, repetia ela, como se isso fosse desculpa para ignorar o sofrimento de uma criança.

O tempo foi passando e o choro tornou-se parte da rotina do prédio. Alguns vizinhos começaram a usar auscultadores para dormir. Outros mudaram de casa. Eu fiquei — presa entre a culpa e a apatia.

Uma noite de tempestade, ouvi algo diferente: não era só choro, eram gritos de dor e pancadas secas contra a parede. Liguei para a polícia com as mãos a tremer.

— Emergência, qual é a sua ocorrência?

— Por favor… há uma criança no 3B… está a ser maltratada! Por favor, venham rápido!

Os minutos pareceram horas até ouvirmos as sirenes na rua. O prédio acordou todo com as luzes azuis a piscar pelas janelas. Os polícias arrombaram a porta do 3B.

Nunca esquecerei o cheiro pesado que saiu dali — uma mistura de mofo, medo e desespero antigo. A mãe estava sentada no chão da cozinha, os olhos vidrados na parede suja. O menino…

O menino estava encolhido num canto do quarto escuro, magro como um fantasma, os olhos enormes e assustados. Tinha hematomas nos braços e nas pernas. Quando os polícias se aproximaram, ele gritou tão alto que até hoje ouço aquele som nos meus pesadelos.

A mãe foi levada pelos polícias. Diziam que sofria de depressão profunda e nunca pediu ajuda. O menino foi levado pelos serviços sociais.

O prédio ficou em silêncio pela primeira vez em anos. Mas não era um silêncio bom — era pesado, cheio de perguntas sem resposta e culpas partilhadas.

Durante semanas ninguém falava sobre o assunto. O Sr. Manuel reformou-se pouco depois; D. Rosa mudou-se para casa da filha; eu comecei a ter ataques de pânico sempre que ouvia uma criança chorar na rua.

Um dia recebi uma carta anónima na caixa do correio: “Obrigada por não teres desistido de mim.” Não tinha assinatura, mas sabia quem era.

Hoje olho para trás e pergunto-me: porque demorámos tanto? Porque é que todos fingimos não ouvir? Será que podíamos ter salvo aquele menino mais cedo?

E vocês? O que fariam se ouvissem gritos atrás de uma porta fechada? Quantas vezes fechamos os olhos para não ver aquilo que nos incomoda?