“Voltei para casa e ele disse: quero o divórcio” – Foi então que me lembrei do conselho da minha mãe
— Quero o divórcio, Sofia. Não dá mais.
As palavras do Rui caíram como uma pedra no meio da sala. O relógio da parede marcava 19h12. A nossa filha, Mariana, estava no quarto a ouvir música, alheia ao que se passava. Senti o chão fugir-me dos pés. O Rui não me olhava nos olhos. Estava de pé, junto à porta, com a mala ainda na mão. O cheiro do jantar que preparara — arroz de pato, o prato favorito dele — parecia agora um insulto.
— Como assim? — perguntei, a voz a tremer. — Vais-me deixar assim? Depois de tudo?
Ele suspirou, desviando o olhar para a janela.
— Sofia, já não somos felizes há muito tempo. Eu… conheci outra pessoa.
O meu coração parou por um segundo. Senti uma náusea subir-me à garganta. Lembrei-me da minha mãe, da última vez que estivemos juntas antes dela morrer: “Nunca te percas de ti própria, mesmo quando todos te virarem as costas.” Na altura, achei que era só mais uma frase feita. Agora, parecia uma profecia.
— Quem é? — perguntei, quase num sussurro.
Ele hesitou.
— Não interessa agora. O importante é que eu… preciso de sair daqui.
A raiva misturou-se com a dor. Levantei-me tão depressa que a cadeira caiu atrás de mim.
— Então vai! Vai ter com ela! Mas lembra-te: tens uma filha! Não és só tu que existes!
Ele baixou a cabeça e saiu sem dizer mais nada. Ouvi a porta bater e depois só silêncio. Fiquei ali parada, a tremer, sem saber se chorava ou gritava. Senti-me ridícula por ter posto a mesa para três.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada no sofá, a olhar para as fotografias na estante: nós os três na praia da Nazaré, Mariana no seu primeiro dia de escola, eu e o Rui no nosso casamento — tão jovens e cheios de sonhos. Como é que tudo se desfez assim?
No dia seguinte, Mariana percebeu logo que algo estava errado.
— Mãe, o pai não dormiu em casa?
Olhei para ela e vi os olhos do Rui nela. Tive vontade de chorar outra vez.
— O pai… precisou de sair um pouco. Vamos falar com calma quando ele voltar.
Ela não disse nada, mas vi a preocupação no seu rosto. Tinha só 13 anos, mas era mais madura do que eu queria admitir.
Os dias seguintes foram um pesadelo. O Rui ligava para falar com a Mariana, mas evitava falar comigo. A minha sogra ligou-me a perguntar o que se passava. Tentei manter a dignidade:
— São coisas nossas, D. Teresa. O Rui vai explicar-lhe melhor.
Mas ela insistiu:
— Sofia, não deixes que ele faça asneira. Ele anda estranho há meses…
Eu sabia disso. Tinha notado as ausências dele, as mensagens escondidas no telemóvel, os jantares de trabalho cada vez mais frequentes. Mas nunca quis acreditar.
No trabalho, mal conseguia concentrar-me. A minha chefe chamou-me ao gabinete:
— Sofia, está tudo bem? Precisas de uns dias?
Balancei a cabeça.
— Não posso parar agora… preciso de manter a cabeça ocupada.
À noite, chorava baixinho na casa de banho para a Mariana não ouvir. Sentia-me sozinha como nunca antes. As amigas tentavam animar-me:
— Vais ver que é melhor assim…
— Ele não te merece!
— Agora pensa em ti!
Mas eu só pensava em como ia pagar a casa sozinha, como ia explicar à Mariana que o pai tinha outra mulher.
Uma tarde, ao ir buscar a Mariana à escola, vi o Rui do outro lado da rua com uma mulher loira. Estavam de mãos dadas. Senti um aperto no peito tão forte que quase não consegui respirar. Mariana viu-os também e ficou pálida.
— É ela? — perguntou-me depois no carro.
Não consegui mentir-lhe.
— Acho que sim…
Ela ficou em silêncio o resto do caminho.
Nessa noite discutimos pela primeira vez.
— Porque é que ele nos fez isto? — gritou ela entre lágrimas. — Eu odeio-o! Odeio-a!
Abracei-a com força.
— Não odeies ninguém, filha… O pai errou, mas continua a ser teu pai.
Ela afastou-se de mim.
— Tu desculpas tudo! Por isso é que ele foi embora!
As palavras dela doeram mais do que qualquer coisa que o Rui tivesse dito. Fui para o quarto e chorei até adormecer.
O tempo passou devagar. Comecei a ir à psicóloga porque sentia que estava a perder o controlo. A psicóloga perguntou-me:
— O que é que quer para si agora?
Não soube responder. Sempre vivi para os outros: para o Rui, para a Mariana, para os meus pais quando eram vivos. E agora? Quem era eu sem eles?
Comecei a sair mais com as amigas. Fui ao cinema sozinha pela primeira vez na vida. Inscrevi-me num curso de cerâmica na junta de freguesia. Pequenas coisas que me faziam sentir viva outra vez.
O Rui continuava ausente. Vinha buscar a Mariana aos fins-de-semana e tentava convencê-la a aceitar a nova namorada dele. Mariana recusava-se a ir lá dormir.
Um dia ele apareceu em casa sem avisar.
— Precisamos de falar — disse ele à porta.
Sentei-me à mesa com ele pela primeira vez em meses.
— Sofia… desculpa tudo isto. Sei que te magoei muito…
Olhei-o nos olhos e vi arrependimento verdadeiro pela primeira vez.
— Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-te — respondi — mas agradeço-te por teres sido honesto agora.
Ele assentiu em silêncio.
— Quero tentar ser um pai melhor para a Mariana…
— Isso depende de ti — disse-lhe simplesmente.
Depois disso as coisas acalmaram um pouco. Mariana começou a aceitar passar mais tempo com ele, mas nunca perdoou completamente aquela traição súbita à família.
No Natal desse ano estávamos só as duas em casa pela primeira vez. Fizemos bacalhau à Brás e vimos filmes até tarde embrulhadas numa manta no sofá.
— Mãe… achas que algum dia vais voltar a ser feliz? — perguntou-me ela baixinho.
Sorri-lhe com ternura e lágrimas nos olhos.
— Acho que sim, filha… Mas talvez seja uma felicidade diferente daquela que conheci antes.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquele dia em que o Rui me deixou. Ainda dói às vezes, mas aprendi a gostar de mim própria outra vez — como a minha mãe sempre me ensinou.
E vocês? Já sentiram o mundo desabar e tiveram de se reinventar? Como encontraram forças para continuar?