Um Coração de Mãe em Ruínas: O Silêncio Entre as Minhas Filhas
— Mãe, posso falar contigo? — A voz da Inês tremia, mesmo que tentasse disfarçar. Estávamos na cozinha, o cheiro do café ainda pairava no ar, e as suas mãos brincavam nervosamente com a chávena. Olhei para ela, tentando decifrar o que se passava.
— Claro, filha. O que se passa? — respondi, sentindo um aperto no peito.
Ela hesitou, os olhos fixos na mesa. — Eu… Eu sempre me senti diferente das minhas irmãs. Como se nunca tivesse sido suficiente para ti. — As palavras caíram como pedras, pesadas e frias.
O mundo parou por um instante. Senti o sangue fugir-me do rosto. A Inês, a minha primogénita, aquela por quem dei tudo quando era só eu e ela contra o mundo… Como podia sentir-se assim?
— Inês… — tentei começar, mas ela interrompeu-me.
— Não é culpa tua, mãe. Ou talvez seja. Não sei. Mas sempre senti que a Mariana era a tua preferida, e a Leonor era a bebé da casa. Eu era só… eu. A que tinha de ser forte, a que não podia falhar.
As lágrimas começaram a escorrer-lhe pelo rosto. Senti-me impotente, como se cada memória da infância dela me fugisse por entre os dedos. Lembrei-me das noites em claro quando ela era bebé, das vezes em que lhe fiz tranças antes da escola, dos desenhos colados no frigorífico. Onde é que falhei?
— Filha, nunca quis que te sentisses assim… — tentei tocar-lhe na mão, mas ela afastou-se.
— Eu sei, mãe. Mas sentia. E sinto. E agora vejo como isso me afetou. Sempre tentei ser perfeita para ti, mas nunca era suficiente.
O silêncio instalou-se entre nós, pesado como chumbo. Oiço ao longe a Leonor a rir-se com a Mariana na sala, alheias ao abismo que se abriu ali mesmo à nossa frente.
A minha cabeça rodopiava com recordações: o dia em que a Inês caiu da bicicleta e eu lhe disse para ser corajosa; as vezes em que me zanguei porque as notas não eram tão boas como as da Mariana; os elogios à Leonor por ser tão doce e carinhosa. Teria eu criado esta distância sem perceber?
— Lembras-te quando fiz 12 anos e tu esqueceste-te do meu bolo? — A voz dela era um sussurro magoado.
Senti uma punhalada no peito. Lembrava-me desse dia: o trabalho tinha corrido mal, o pai dela estava fora em Lisboa e eu estava exausta. Fiz-lhe panquecas à pressa e prometi um bolo no fim de semana. Mas para ela ficou marcado como o dia em que não fui suficiente.
— Desculpa, Inês… — sussurrei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
Ela encolheu os ombros. — Não é só isso. É tudo. É nunca teres perguntado como me sentia quando a Mariana ganhou aquele prémio na escola e toda a gente só falava dela. É teres dito à Leonor para não chorar porque ela era sensível demais, mas nunca me deixaste chorar a mim.
A dor dela era um espelho da minha culpa. Sempre achei que estava a fazer o melhor: ser forte por elas, exigir porque acreditava no potencial delas, proteger sem sufocar. Mas será que alguma vez parei para ouvir realmente o que sentiam?
— Inês, eu amei-te sempre igual às tuas irmãs. Só não sabia mostrar de outra maneira…
Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que começara a falar.
— Eu sei, mãe. Mas às vezes amar não chega se não se sente.
Ficámos ali sentadas, duas mulheres separadas por anos de silêncios e mal-entendidos. Senti vontade de gritar com o mundo inteiro: porque é tão difícil ser mãe? Porque ninguém nos ensina a equilibrar o amor entre filhos tão diferentes?
Naquela noite não dormi. Ouvia os risos abafados das minhas filhas mais novas e pensava em tudo o que tinha feito — ou deixado por fazer — pela Inês. O pai delas sempre dizia que eu era demasiado exigente com ela porque era a mais velha, mas eu achava que estava só a prepará-la para o mundo.
No dia seguinte tentei falar com a Mariana e com a Leonor sobre o que se passava.
— A Inês sente-se posta de parte? — perguntou a Mariana, incrédula.
— Ela nunca disse nada… — murmurou a Leonor.
— Talvez porque nunca lhe demos espaço para dizer — respondi eu, sentindo uma amargura na boca.
A partir desse dia comecei a reparar em pequenos gestos: como a Inês se calava quando as irmãs falavam das suas conquistas; como sorria sem entusiasmo quando eu elogiava as outras; como evitava estar sozinha comigo.
Tentei aproximar-me dela: convidei-a para almoçar fora, perguntei-lhe sobre o trabalho novo no hospital de Santa Maria, ofereci-lhe ajuda para procurar casa em Lisboa. Mas havia sempre uma barreira invisível entre nós.
Uma tarde, depois de uma discussão entre as três irmãs sobre quem ficaria com o quarto maior nas férias de verão na casa dos avós em Viseu, ouvi a Inês dizer:
— Não faz mal, eu fico no sofá como sempre.
O tom resignado dela partiu-me o coração. As irmãs olharam-na surpreendidas e pela primeira vez vi nelas um lampejo de compreensão.
Nessa noite sentei-me com as três na sala.
— Meninas, precisamos de falar sobre o que se passa entre vocês — comecei, tentando controlar as emoções.
A conversa foi dura: lágrimas, acusações velhas, mágoas guardadas há anos vieram ao de cima. A Mariana confessou sentir-se pressionada por ser “a perfeita”; a Leonor admitiu sentir-se invisível entre as duas mais velhas; e a Inês finalmente pôde dizer tudo o que tinha guardado no peito.
No fim abraçámo-nos todas, mas sabíamos que não bastava uma conversa para curar anos de silêncios.
Hoje continuo a tentar reconstruir pontes com a Inês. Às vezes sinto que é tarde demais; outras vezes acredito que o amor pode mesmo curar tudo se for acompanhado de escuta e humildade.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mães vivem presas à culpa dos erros passados? Quantos filhos carregam feridas invisíveis por palavras não ditas? Será possível recomeçar quando já se perdeu tanto tempo?