“Tu não fazes nada o dia todo, o bebé só dorme e come” – A história de uma mãe portuguesa à procura de compreensão
“Tu não fazes nada o dia todo, o bebé só dorme e come.” As palavras do Rui ecoaram pela cozinha como um trovão inesperado. Eu estava a aquecer a sopa para o jantar, com a pequena Matilde ao colo, ainda a tentar acalmá-la depois de mais uma crise de cólicas. Senti o sangue gelar-me nas veias. Olhei para ele, cansada, com olheiras profundas e cabelo preso num coque desalinhado.
“Desculpa? Queres repetir?” perguntei, tentando controlar a voz que ameaçava tremer.
O Rui pousou a pasta no chão e suspirou, como se ele é que tivesse tido um dia difícil. “Só estou a dizer que… pronto, eu chego cansado do trabalho e tu estás sempre exausta. Mas o bebé só dorme e come. Não percebo.”
Nesse momento, tudo dentro de mim se partiu em mil pedaços. Quis gritar, quis atirar-lhe com a sopa, quis fugir dali. Mas limitei-me a pousar Matilde no berço e fui para a casa de banho. Tranquei a porta e deixei-me deslizar até ao chão frio de azulejos. Chorei em silêncio, para não acordar a bebé. Chorei por mim, pela mulher que fui antes da maternidade, pela mãe que tentava ser agora e pela solidão esmagadora que sentia.
Lembrei-me de quando conheci o Rui na faculdade, das noites em que sonhávamos juntos com uma família grande numa casa cheia de risos. Nunca imaginei que o som mais frequente seria o do meu próprio choro abafado.
A minha mãe sempre dizia: “Ser mãe é um trabalho invisível.” Eu achava que era exagero dela, mas agora percebia cada palavra. Os dias eram todos iguais: acordar com o choro da Matilde às três da manhã, dar-lhe de mamar, trocar fraldas, adormecê-la ao colo porque ela só dormia assim. Quando finalmente adormecia, eu corria para lavar roupa, arrumar brinquedos, preparar papas. O tempo para mim desaparecera como água entre os dedos.
O Rui não via nada disto. Para ele, eu estava em casa “de licença”, como se fosse férias. Não via as noites em claro, as dores nas costas de tanto embalar a bebé, o medo constante de não estar a fazer tudo bem.
Naquela noite, depois do jantar servido em silêncio, tentei falar com ele.
“Rui, tu achas mesmo que eu não faço nada?”
Ele olhou-me sem perceber a gravidade da pergunta. “Não foi isso que quis dizer… Só acho que às vezes exageras no cansaço.”
“Exagero? Achas que é fácil estar sozinha com um bebé o dia todo? Achas que é fácil não dormir há semanas? Achas que é fácil sentir-me invisível?”
Ele encolheu os ombros. “Eu também trabalho.”
A discussão terminou ali. Fui para o quarto e chorei mais um pouco. Senti-me tão sozinha como nunca.
Os dias seguintes foram iguais: eu calada, ele distante. A Matilde continuava a acordar de hora a hora durante a noite. Comecei a sentir-me cada vez mais ansiosa. Um dia, enquanto dava banho à Matilde, senti uma tontura tão forte que tive de me sentar no chão da casa de banho. Oiço ainda hoje o som da minha respiração ofegante misturado com o choro dela.
Liguei à minha mãe.
“Mãe… eu não aguento mais.”
Ela veio logo cá a casa. Quando chegou, olhou para mim e disse: “Filha, tu precisas de ajuda.”
Chorei no colo dela como uma criança. Ela ficou comigo aquela tarde e obrigou-me a dormir um pouco enquanto ela tomava conta da neta.
Quando acordei, senti-me um pouco melhor. Mas sabia que não podia continuar assim.
Tentei falar com o Rui outra vez naquela noite.
“Rui, eu preciso de ti. Preciso mesmo.”
Ele olhou-me finalmente nos olhos. “Desculpa… Eu não sabia que era assim tão difícil.”
“Não sabes porque não queres ver.”
Ele ficou calado durante muito tempo. Depois disse: “Queres que eu fique mais tempo em casa? Que te ajude mais?”
Assenti com lágrimas nos olhos.
A partir desse dia, as coisas começaram a mudar devagarinho. O Rui começou a ajudar mais: dava banho à Matilde ao fim do dia, ficava com ela ao colo para eu poder tomar banho descansada. Aos fins-de-semana íamos passear os três juntos ao parque da cidade.
Mas nem tudo ficou perfeito. A relação ficou marcada por aquela frase dele – “Tu não fazes nada o dia todo”. Sempre que me sentia cansada ou sobrecarregada, lembrava-me disso e sentia uma pontada no peito.
Comecei também a ir ao centro de saúde falar com outras mães no grupo pós-parto. Ali percebi que não estava sozinha – todas sentiam o mesmo: cansaço extremo, solidão, falta de reconhecimento dos maridos ou das famílias.
Uma vez uma mãe disse: “Se os homens tivessem de fazer isto sozinhos uma semana, mudavam logo de opinião.” Todas rimos, mas era um riso amargo.
Aos poucos fui recuperando alguma força. Voltei a ler livros antes de dormir – mesmo que fossem só duas páginas antes de adormecer com a Matilde ao peito. Voltei a ligar às amigas e a convidá-las para virem cá a casa tomar café.
O Rui também mudou – começou a valorizar mais o meu esforço e até passou a dizer aos amigos: “A Mariana faz um trabalho incrível com a nossa filha.” Mas demorou meses até sentir que ele realmente entendia.
Hoje olho para trás e penso em quantas mulheres portuguesas passam pelo mesmo – mães sozinhas em casa com bebés pequenos, sem apoio nem reconhecimento. Quantas choram em silêncio na casa de banho para ninguém ouvir? Quantas sentem culpa por estarem cansadas?
Se pudesse voltar atrás, teria pedido ajuda mais cedo. Teria falado mais alto sobre o meu cansaço e as minhas necessidades.
Agora Matilde já tem dois anos e corre pela casa aos gritos de alegria. O Rui aprendeu finalmente a mudar fraldas sem reclamar e até já canta canções de embalar (embora desafinado!).
Mas nunca esquecerei aquele dia em que me senti invisível na minha própria casa.
Será que algum dia vamos conseguir valorizar verdadeiramente o trabalho invisível das mães? Quantas mulheres ainda terão de ouvir “tu não fazes nada” antes de sermos ouvidas?
E vocês? Já se sentiram assim? O que fariam no meu lugar?