Sombras na Reforma: A História da Dona Amélia de Lisboa

— Mãe, já te disse que não posso ir buscar o Martim hoje! — gritou a minha filha, Joana, do outro lado da linha, a voz impaciente como quem repete sempre o mesmo refrão.

Sentei-me na cadeira da cozinha, o telefone ainda quente na mão. Olhei para o relógio: eram quase cinco da tarde. O silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca. Oiço o eco da voz dela na minha cabeça, misturado com o som distante dos carros na rua. Sinto uma pontada no peito — não física, mas aquela dor surda de quem percebe que já não é prioridade na vida de ninguém.

Passei quarenta anos a cuidar dos outros. Fui enfermeira no Hospital de Santa Maria, vi nascer e morrer tanta gente, segurei mãos trémulas, limpei lágrimas e sangue. Sempre achei que, quando chegasse a minha vez de descansar, teria finalmente tempo para mim e para os meus. Mas agora, reformada há três anos, descubro que o tempo pode ser um inimigo cruel.

O Martim, o meu neto mais novo, tem sete anos e olhos curiosos. Adora vir cá a casa porque lhe faço arroz doce como ninguém. Mas ultimamente vejo-o cada vez menos. A Joana trabalha demais, diz ela. O meu filho mais velho, o Rui, vive em Porto Salvo e raramente liga. “A vida está difícil para todos”, repete-me sempre que tento desabafar.

Hoje, depois da chamada da Joana, fiquei ali sentada a olhar para as mãos. Mãos que já foram firmes, agora cheias de veias salientes e manchas castanhas. Lembro-me de quando eram pequenas e macias, quando seguravam os meus filhos ao colo. Agora parecem pertencer a outra pessoa.

Oiço passos no corredor do prédio — talvez seja a vizinha do lado, a Dona Lurdes. Ela também está sozinha desde que o marido morreu. Às vezes trocamos palavras rápidas no elevador: “Como está hoje, Dona Amélia?” “Vai-se andando.” Mas nunca passa disso.

A verdade é que a solidão pesa mais à noite. Quando as luzes da cidade se acendem e as famílias se juntam à mesa, eu aqueço uma sopa instantânea e sento-me em frente à televisão. Os programas repetem-se: novelas brasileiras, concursos de perguntas e respostas. Às vezes rio-me sozinha das piadas sem graça do apresentador.

No outro dia tentei ligar ao Rui. Atendeu ao fim de quatro toques:

— Mãe, estou numa reunião. Depois ligo-te, está bem?

Nunca ligou.

Começo a pensar se fiz alguma coisa errada. Será que fui demasiado exigente? Será que trabalhei demais? Lembro-me das noites em que chegava tarde a casa e eles já estavam a dormir. O pai deles também não ajudava — sempre ausente, sempre com desculpas. Acabámos por nos separar quando o Rui tinha dez anos. Talvez tenha sido aí que tudo começou a desmoronar.

A reforma trouxe-me uma liberdade amarga. Já não tenho horários nem patrões, mas também perdi o sentido de utilidade. No início tentei ocupar-me: inscrevi-me numa aula de hidroginástica no ginásio do bairro. Mas as outras senhoras já tinham os seus grupos formados e eu sentia-me deslocada. Fui duas vezes e nunca mais voltei.

As contas continuam a chegar: água, luz, condomínio. A pensão mal chega para tudo. Faço contas à vida todas as semanas — corto no supermercado, deixo de comprar fruta fresca quando está cara. No Natal passado comprei brinquedos baratos para os netos e vi nos olhos deles uma pontinha de desilusão.

— Avó, não tens mais daqueles chocolates bons? — perguntou a Leonor, a mais velha.

Sorri e disse que para a próxima haveria mais sorte.

Às vezes penso em vender a casa e ir para um lar. Mas depois lembro-me do cheiro das paredes, das marcas dos meus filhos na porta da cozinha — riscas feitas com lápis para medir o crescimento deles ano após ano. Como posso abandonar tudo isto?

No mês passado tive uma discussão feia com a Joana. Ela queria que eu ficasse com o Martim durante uma semana inteira porque ia viajar em trabalho.

— Mãe, não podes recusar! És a avó dele!
— Joana, eu também tenho direito ao meu tempo…
— Que tempo? Passas os dias sozinha!

As palavras dela ficaram-me atravessadas na garganta como espinhas de peixe. Fiquei sem resposta.

No fundo sei que ela tem razão — passo os dias sozinha. Mas será justo exigir sempre mais de mim? Não sou apenas um apoio logístico para os netos ou uma solução de última hora.

Na semana seguinte fui ao centro de saúde buscar uma receita para a tensão alta. A enfermeira nova olhou para mim com um sorriso profissional:

— Dona Amélia, vive sozinha?
— Sim…
— Tem família por perto?
— Tenho filhos… mas estão sempre ocupados.

Ela assentiu com um olhar triste que me fez sentir ainda mais invisível.

Às vezes penso em bater à porta da Dona Lurdes e convidá-la para um chá. Mas depois falta-me coragem — não quero parecer carente ou desesperada.

No domingo passado fiz arroz doce só para mim. Sentei-me à mesa da cozinha e comi devagar, saboreando cada colherada como se fosse um ritual antigo. Lembrei-me da minha mãe, das tardes em que cozinhávamos juntas antes dela adoecer. Senti saudades de ser filha — de ter alguém que cuidasse de mim.

Recebi uma mensagem da Joana ao fim do dia:

“Desculpa por ter sido dura contigo esta semana. O Martim perguntou por ti.”

Respondi apenas: “Quando quiserem vir lanchar, avisem.”

Eles vieram na quarta-feira seguinte. O Martim correu para mim assim que entrou:

— Avó! Fiz um desenho para ti!

Abracei-o com força e senti as lágrimas ameaçarem cair. A Joana ficou à porta da cozinha, hesitante.

— Mãe… desculpa mesmo.

Olhei para ela e vi nos olhos dela o cansaço que também era meu — um cansaço antigo, passado de mãe para filha como uma herança silenciosa.

Sentámo-nos todos à mesa e durante alguns minutos senti-me inteira outra vez.

Mas sei que amanhã voltarei ao silêncio da casa vazia, às contas por pagar e à televisão que fala sozinha.

Pergunto-me muitas vezes: será este o destino de todas as mulheres como eu? Depois de uma vida inteira a cuidar dos outros, quem cuida de nós? E vocês — sentem-se também esquecidos pelas vossas famílias?