Seis Anos Como Mãe Reformada Viraram a Minha Vida do Avesso: Uma História de Família Portuguesa
— Vais mesmo deixar-me outra vez, mãe? — perguntei, com a voz embargada, enquanto ela fechava a mala azul gasta no corredor. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume dela, um aroma doce que me fazia lembrar os domingos de infância, quando tudo parecia mais simples.
Ela não respondeu de imediato. Limitou-se a olhar para mim, olhos cansados, mas determinados. — Preciso deste tempo, Mariana. Preciso de respirar — disse, quase num sussurro, como se tivesse vergonha da própria necessidade.
A porta fechou-se atrás dela com um estalido seco. E assim começava mais um verão. Mais um verão em que ficava sozinha a gerir o caos da nossa família: o meu pai, reformado e cada vez mais ausente no seu próprio mundo; o meu irmão Rui, desempregado e revoltado com tudo e todos; a minha filha Inês, adolescente inquieta, sempre à procura de respostas que eu não sabia dar.
A casa parecia maior sem a minha mãe. O silêncio era pesado, interrompido apenas pelo som da televisão alta na sala — o meu pai refugiava-se nos noticiários como quem foge da realidade. Eu tentava manter a rotina: preparar o jantar, arrumar a cozinha, ajudar a Inês com os trabalhos da escola. Mas tudo parecia desmoronar-se aos poucos.
Numa noite particularmente difícil, sentei-me à mesa da cozinha com o Rui. Ele mexia no telemóvel, impaciente.
— Não percebo porque é que ela tem de ir todos os verões — resmungou. — Como se nós não precisássemos dela aqui.
— Ela precisa de espaço, Rui. Não é fácil para ninguém — tentei explicar, mas ele atirou o telemóvel para cima da mesa.
— Fácil? E para ti é fácil? Vês o pai? Nem fala connosco! E tu… tu andas sempre cansada. Isto não é vida para ninguém!
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Não era vida para ninguém. Mas era a nossa vida. Uma vida feita de ausências e silêncios, de pequenas batalhas diárias que ninguém via.
No supermercado, sentia os olhares das vizinhas. “Lá vai a Mariana outra vez sozinha”, pareciam dizer. Havia uma espécie de pena nos seus olhos, mas também julgamento. Em Portugal, ainda se espera que as mães sejam o pilar inabalável da família — e quando falham ou precisam de se afastar, tudo treme.
Certa tarde, ao regressar do trabalho, encontrei o meu pai sentado no jardim, olhar perdido no horizonte.
— Pai… está tudo bem? — perguntei, sentando-me ao lado dele.
Ele demorou a responder. — A tua mãe sempre foi mais forte do que eu… Eu nunca soube lidar com isto — confessou, surpreendendo-me pela honestidade.
— Não tens de ser forte sozinho — disse-lhe, apertando-lhe a mão.
Ele sorriu, mas os olhos estavam húmidos. Pela primeira vez em anos, senti que talvez pudéssemos reconstruir alguma coisa entre nós.
Os dias passavam devagar. A Inês começou a chegar mais tarde a casa. Um dia apareceu com os olhos vermelhos.
— O que se passa? — perguntei, tentando não soar demasiado preocupada.
Ela hesitou antes de responder:
— Sinto falta da avó… E tu estás sempre cansada… Sinto-me sozinha aqui.
O meu coração apertou-se. Abracei-a com força. — Eu também sinto falta dela. Mas temos uma à outra, não temos?
Ela assentiu, encostando-se ao meu ombro como fazia em pequena.
O verão avançava e as discussões com o Rui tornaram-se mais frequentes. Uma noite, depois de uma discussão acesa sobre dinheiro e responsabilidades, ele saiu porta fora e só voltou na manhã seguinte. Dormi mal nessa noite, atormentada por pensamentos sombrios: e se nunca mais voltasse? E se algo lhe acontecesse?
Quando regressou, olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Desculpa… Eu só não sei lidar com isto tudo — murmurou.
Abracei-o sem dizer nada. Às vezes não há palavras suficientes para remendar o que está partido.
No final do verão, recebi uma chamada da minha mãe. A voz dela soava diferente: mais leve, mas também mais distante.
— Mariana… este ano vou ficar mais tempo fora. Preciso mesmo de cuidar de mim — disse ela.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — E nós? Quem cuida de nós?
Ela ficou em silêncio do outro lado da linha. Depois desligou.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti-me traída e abandonada. Mas também percebi que estava cansada de esperar que alguém viesse salvar-nos.
Comecei a mudar pequenas coisas: convidei o meu pai para passeios à beira-rio; incentivei o Rui a procurar ajuda profissional; inscrevi-me com a Inês num curso de cerâmica ao sábado de manhã. Aos poucos, fomos encontrando novas rotinas e formas de estar juntos.
Quando a minha mãe finalmente voltou, meses depois do previsto, encontrou uma família diferente: menos dependente dela, mas ainda marcada pelas feridas do passado.
Sentámo-nos as duas na varanda ao pôr-do-sol. Ela olhou para mim com ternura e tristeza.
— Perdoas-me? — perguntou baixinho.
Demorei a responder. — Não sei se consigo perdoar tudo… Mas estou disposta a tentar.
Ela sorriu e apertou-me a mão.
Hoje olho para trás e vejo como aqueles seis anos me transformaram. Aprendi que ser mãe reformada não é sinónimo de desistir — às vezes é preciso afastar-se para sobreviver. Mas também aprendi que nenhuma ausência se preenche totalmente e que as cicatrizes ficam para sempre.
Pergunto-me muitas vezes: quantas famílias vivem presas neste ciclo de silêncios e ausências? Quantas mães carregam sozinhas o peso do mundo? E vocês… já sentiram que tiveram de ser fortes demais por demasiado tempo?