Quando o silêncio cai entre mãe e filho: a história de Ana e Mateus
— Mateus, não podes simplesmente deixar de falar comigo! — gritei-lhe ao telefone, a voz embargada, as lágrimas já a correrem-me pelo rosto.
Do outro lado, silêncio. O mesmo silêncio que se tinha tornado presença constante na minha vida nos últimos meses. O meu filho, o meu menino, agora homem feito, respondia-me com frases curtas, frias, como se cada palavra fosse um favor. E eu, Ana, mãe solteira desde que o pai dele nos deixou para ir viver com outra mulher em Braga, sentia-me a perder tudo outra vez.
Lembro-me do dia em que tudo mudou. Era uma tarde de domingo, o cheiro do assado ainda pairava na cozinha. Mateus chegou com a Andreia, a nova namorada. Ela entrou com um sorriso forçado e olhos que me mediam de cima a baixo. Senti logo ali que algo estava diferente. Durante o almoço, ela falava muito sobre independência, sobre como os filhos deviam aprender a viver sem as mães sempre por perto. Mateus ria-se, mas eu via-lhe o desconforto nos olhos.
Depois desse dia, as visitas começaram a espaçar-se. As mensagens passaram de diárias a semanais. Até que um dia, depois de lhe perguntar se vinha jantar comigo ao sábado como sempre fazíamos, ele respondeu apenas: “Não posso. Andreia acha melhor passarmos algum tempo sozinhos.”
Fiquei ali, com o telemóvel na mão, a olhar para aquelas palavras como se fossem uma sentença. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como podia aquela rapariga, que mal conhecia, afastar-me do meu filho? E como podia ele permitir isso?
As semanas passaram. O Natal aproximava-se e eu decidi fazer um bolo-rei como ele gostava. Liguei-lhe:
— Mateus, este ano vens cá passar o Natal?
— Mãe… este ano vou passar com a família da Andreia. Ela quer apresentar-me aos pais.
— Mas… sempre passaste comigo! — insisti, sentindo a voz tremer.
— Mãe, tens de perceber… não posso estar sempre preso ao passado.
Desligou antes que eu pudesse responder. Sentei-me no sofá e chorei como não chorava desde que o pai dele nos deixou. Senti-me sozinha, traída, invisível.
Os dias seguintes foram um tormento. Ia trabalhar para o centro de saúde de Almada como administrativa, mas mal conseguia concentrar-me. As colegas notaram logo:
— Ana, estás bem? Pareces tão em baixo…
— É o Mateus… — respondi num sussurro. — Já não fala comigo.
A Maria do Carmo, minha amiga de longa data, tentou animar-me:
— Os filhos crescem, Ana. Tens de os deixar voar.
Mas ninguém percebeu que não era só isso. Era o corte abrupto, a frieza. Era sentir que tinha perdido o único elo que me restava nesta vida.
Comecei a fazer coisas para ocupar o tempo: inscrevi-me em aulas de pintura na Junta de Freguesia, comecei a caminhar todos os dias no Parque da Paz. Mas nada preenchia aquele vazio.
Uma noite, não aguentei mais e fui até ao prédio onde ele morava com Andreia. Esperei no carro até os ver chegar. Quando saíram do carro, chamei-o:
— Mateus! Podemos falar?
Ele olhou para mim com surpresa e algum embaraço.
— Mãe… não podes aparecer assim.
— Só quero saber se estás bem! — implorei.
Andreia agarrou-lhe o braço:
— Mateus, vamos subir.
Ele hesitou por um segundo e depois seguiu-a sem olhar para trás.
Voltei para casa destroçada. Passei dias sem conseguir comer ou dormir direito. A minha irmã Teresa veio visitar-me:
— Ana, tens de reagir! Não podes deixar que isto te destrua.
— Mas ele era tudo para mim… — sussurrei.
Ela abraçou-me e chorámos juntas.
O tempo foi passando e fui aprendendo a viver com a ausência dele. Mas nunca deixei de esperar uma mensagem, um telefonema. No aniversário dele comprei-lhe um livro que sabia que ia gostar e deixei-o na portaria do prédio. Não obtive resposta.
No trabalho, comecei a ser menos paciente com os utentes. Um dia perdi a cabeça com uma senhora idosa que se esqueceu dos papéis:
— Não vê que está a atrasar toda a gente?
A chefe chamou-me ao gabinete:
— Ana, tens de cuidar de ti. Se precisares de uns dias…
Aceitei relutantemente e fiquei em casa a olhar para as paredes.
Uma tarde recebi uma mensagem inesperada da Andreia:
“Olá Ana. O Mateus está bem. Precisa só de algum espaço.”
Senti uma mistura de alívio e raiva. Como podia ela falar por ele? Porque não era ele próprio a dizer-me isso?
Decidi escrever-lhe uma carta longa onde lhe contei tudo: as saudades, as noites em claro, o medo de morrer sozinha sem nunca mais ouvir a voz dele. Não obtive resposta.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver só comigo mesma. Comecei a dar mais valor às pequenas coisas: um café com as colegas, um passeio à beira-mar na Costa da Caparica, um livro lido ao fim da tarde.
Um dia encontrei por acaso o pai do Mateus no supermercado.
— Ouvi dizer que o Mateus já não te fala — disse ele sem rodeios.
— Não sei o que fiz de errado… — respondi baixinho.
Ele encolheu os ombros:
— Os filhos crescem e fazem escolhas. Às vezes magoam-nos sem querer.
Saí dali com um nó na garganta mas também com uma estranha sensação de aceitação.
No Natal seguinte recebi finalmente uma mensagem do Mateus:
“Mãe, espero que estejas bem. Um dia destes passo aí.”
Chorei de alívio mas também de tristeza por tudo o que tínhamos perdido.
Agora olho para trás e pergunto-me: será que fui demasiado possessiva? Será que devia ter deixado ir mais cedo? Ou será que há laços que nunca deviam ser cortados?
E vocês? Já sentiram este silêncio entre quem mais amam? Como se aprende a viver com ele?