Quando o Lar Deixa de Ser Lar: Confissões de uma Mãe Portuguesa Que Perdeu Tudo Pela Família
— Teresa, não percebes? Já não és daqui. — As palavras do meu filho mais velho, Miguel, ecoaram pela sala como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. Olhei à minha volta: a casa que durante anos imaginei nos meus sonhos, enquanto limpava casas alheias em Lyon, agora parecia-me estranha, fria, quase hostil.
A minha história começa há vinte anos, quando o desemprego bateu à porta do nosso pequeno apartamento em Braga. O António, meu marido, tentava arranjar trabalho nas obras, mas os biscates eram poucos e mal pagos. Os nossos filhos, Miguel e Sofia, eram pequenos e eu não suportava vê-los pedir mais do que podíamos dar. Foi então que a minha irmã, Ana, me falou de uma oportunidade em França. “Vais ver, Teresa, é duro, mas compensa. Vais poder dar-lhes tudo o que aqui não tens.”
Lembro-me do dia em que parti. O Miguel chorava agarrado às minhas pernas. A Sofia, pequenina, não percebia porque é que a mãe tinha de ir embora. O António prometeu-me que cuidaria de tudo. “Vai tranquila, Teresa. Eu fico com eles.”
Os primeiros meses em Lyon foram um inferno. Trabalhava de madrugada até à noite, limpando casas de gente que nem sabia o meu nome. Dormia num quarto minúsculo com outras três mulheres portuguesas. Chorávamos juntas ao serão, partilhando saudades e sonhos de regressar.
Mas cada euro que ganhava era enviado para Braga. Pagava as contas, comprava livros para os miúdos, ajudava o António a pagar as dívidas. Nas chamadas semanais pelo telefone público, ouvia sempre a mesma coisa: “Estamos bem, mãe. O pai está a tratar de tudo.”
Os anos passaram depressa e devagar ao mesmo tempo. Vi os meus filhos crescerem por fotografias e chamadas rápidas. Perdi aniversários, festas da escola, quedas de bicicleta e primeiros amores. Mas dizia para mim mesma: “É por eles. Um dia vou voltar e tudo fará sentido.”
Quando finalmente consegui juntar dinheiro suficiente para comprar um pequeno apartamento em Braga — o nosso lar — senti-me vitoriosa. Marquei o regresso com meses de antecedência. Comprei presentes para todos: perfumes para a Sofia, um relógio para o Miguel, uma camisa nova para o António.
O dia da chegada foi estranho desde o início. O António não estava no aeroporto. “Teve de trabalhar”, disse-me a Sofia pelo telefone, com uma voz distante. Quando cheguei a casa, encontrei tudo arrumado demais, como se ninguém ali vivesse realmente.
Na primeira noite reparei que o António dormia no sofá. “É só por causa das costas”, disse ele, evitando o meu olhar. O Miguel quase não falava comigo; a Sofia passava horas fechada no quarto.
Uma semana depois, descobri a verdade. Ouvi-os a discutir na cozinha:
— Não lhe digas nada! Ela já fez o suficiente! — sussurrava o António.
— Mas ela tem direito a saber! — respondia a Sofia.
Entrei sem bater:
— Saber o quê?
O silêncio foi ensurdecedor. Finalmente, a Sofia olhou-me nos olhos:
— O pai tem outra pessoa.
Senti o mundo desabar. O António baixou a cabeça:
— Teresa… Eu… Não foi planeado… Estava sozinho… Tu estavas longe…
Saí de casa sem saber para onde ir. Sentei-me num banco do jardim onde costumava brincar com os meus filhos quando eram pequenos. Chorei até não ter mais lágrimas.
Nos dias seguintes tentei falar com o Miguel e com a Sofia. O Miguel evitava-me; dizia que eu tinha escolhido ir embora e que agora não podia exigir nada deles. A Sofia era mais compreensiva, mas estava dividida entre mim e o pai.
Comecei a perceber que durante todos aqueles anos em que trabalhei como uma escrava para lhes dar tudo, fui ficando cada vez mais distante deles. O António encontrou consolo noutra mulher — uma vizinha nossa — e os meus filhos aprenderam a viver sem mim.
Tentei reconstruir alguma coisa daquele lar que já não era meu. Cozinhava os pratos preferidos deles; tentava conversar sobre os seus dias; oferecia ajuda nos trabalhos da escola ou no emprego do Miguel. Mas era sempre recebida com indiferença ou irritação.
Uma noite ouvi o Miguel ao telefone:
— Ela está sempre aqui em casa agora… Não sei o que fazer… Sinto-me estranho… Não é como antes.
Percebi então que também ele sofria com a minha ausência e agora com o meu regresso forçado.
Procurei trabalho em Braga, mas ninguém queria contratar uma mulher da minha idade sem experiência recente em Portugal. As minhas economias começaram a desaparecer rapidamente — afinal, tudo tinha sido investido naquela casa que já não era minha.
A solidão tornou-se insuportável. A Ana tentava animar-me:
— Teresa, tens de pensar em ti agora! Já fizeste tudo por eles!
Mas como é que se pensa em si própria quando se viveu toda uma vida pelos outros?
Um dia decidi confrontar o António:
— Porque é que nunca me disseste nada? Porque é que me deixaste continuar a acreditar que éramos uma família?
Ele encolheu os ombros:
— Achei que era melhor assim… Não queria magoar-te.
Magoar-me? Como se fosse possível magoar mais do que isto…
A Sofia começou a sair cada vez mais de casa; dizia que precisava de espaço. O Miguel mudou-se para Lisboa para trabalhar e raramente ligava.
Fiquei sozinha naquele apartamento vazio — paredes frias cheias de fotografias antigas de uma família que já não existia.
Às vezes pergunto-me se valeu a pena todo este sacrifício. Se teria sido melhor ficar pobre mas unida àqueles que amava.
Hoje olho-me ao espelho e mal reconheço aquela mulher cansada e triste.
Será que alguma mãe merece perder tudo por tentar dar tudo? E vocês? O que fariam no meu lugar?