Quando o Amor se Torna Conta: O Preço de Cuidar da Minha Filha
— Achas mesmo justo, Miguel? — perguntei, com a voz a tremer, enquanto segurava a chávena de chá já fria. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, mas o sono parecia ter abandonado a nossa casa há horas.
Miguel olhou-me, cansado, os olhos semicerrados depois de mais um dia de trabalho no escritório de contabilidade. — Justo o quê, Sofia? — respondeu ele, tentando não levantar a voz para não acordar a Inês.
— Justo eu estar em casa todos os dias, a cuidar da nossa filha, a tratar da casa, e tu… tu simplesmente achas que é obrigação minha. Como se fosse natural. Como se não fosse trabalho — desabafei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
O silêncio dele foi mais doloroso do que qualquer resposta. Senti-me invisível. Desde que Inês nasceu, há três anos, a minha vida tinha-se tornado um ciclo interminável de fraldas, refeições e brinquedos espalhados pela sala. Antes do casamento, nunca falámos verdadeiramente sobre filhos. Era uma ideia distante, quase abstrata. Só depois de seis meses juntos é que Miguel começou a falar em aumentar a família. Eu não me opus. Sempre imaginei que seria mãe um dia, mas nunca pensei que me sentiria tão sozinha nesse papel.
Lembro-me do dia em que Inês nasceu. O hospital de Santa Maria estava gelado e o cheiro a desinfetante misturava-se com o medo e a expectativa. Quando finalmente a segurei nos braços, jurei que faria tudo por ela. Mas ninguém me avisou que “tudo” podia significar perder-me de mim mesma.
Os primeiros meses foram um nevoeiro de noites mal dormidas e visitas de familiares que vinham ver o bebé e pouco perguntavam por mim. A minha mãe dizia sempre: — É assim mesmo, filha. Agora és mãe. — Mas eu queria ser mais do que isso. Queria ser vista.
Miguel voltava para casa tarde, exausto, e eu tentava não despejar nele toda a frustração acumulada. Mas naquela noite, não consegui mais guardar para mim.
— Sabes quanto custa uma ama em Lisboa? — perguntei, tentando controlar o tom. — Se eu trabalhasse fora, teríamos de pagar alguém para cuidar da Inês. Mas porque sou eu, parece que não tem valor.
Ele suspirou, esfregando as têmporas. — Sofia, não é isso… Eu sei que trabalhas muito. Mas somos uma família. Não devíamos estar a pôr preço nas coisas.
— Não é pôr preço! É reconhecimento! — explodi finalmente. — Sinto-me como se fosse invisível nesta casa. Como se tudo o que faço fosse dado adquirido.
Miguel levantou-se abruptamente e saiu para a varanda. Fiquei sozinha na cozinha, ouvindo apenas o som do meu próprio coração acelerado.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para todos e vesti Inês para ir ao parque. Mas dentro de mim crescia uma raiva surda. Comecei a pesquisar na internet fóruns de mães portuguesas. Li histórias parecidas com a minha: mulheres que tinham deixado carreiras para cuidar dos filhos e agora sentiam-se presas numa prisão dourada.
Uma tarde, enquanto Inês dormia a sesta, liguei à minha irmã Ana.
— Não aguento mais isto — confessei-lhe. — Sinto que perdi quem era.
Ana sempre foi mais prática do que eu. — Tens de falar com ele outra vez. Ou então arranjar um trabalho nem que seja a meio tempo. Não podes continuar assim.
Mas arranjar trabalho não era fácil. O mercado estava saturado e eu já estava afastada há três anos. Além disso, quem ficaria com Inês? As creches públicas tinham listas de espera intermináveis e as privadas eram caríssimas.
Nessa noite, voltei ao tema com Miguel.
— Preciso de sentir que contribuo para esta família de outra forma — disse-lhe baixinho enquanto ele lavava os dentes.
Ele olhou-me pelo espelho. — Achas que não contribuis? Sofia, és o pilar disto tudo.
— Então porque é que me sinto tão sozinha? Porque é que parece que só tu tens direito a reclamar cansaço?
Miguel pousou a escova dos dentes e abraçou-me por trás. — Desculpa se te fiz sentir assim. Não era minha intenção.
Mas as palavras dele soaram vazias. O problema era mais fundo do que um simples pedido de desculpas podia resolver.
Comecei a fazer contas ao orçamento familiar. Se Miguel me “pagasse” pelo trabalho em casa — nem que fosse uma pequena mesada para eu poder comprar algo só para mim sem pedir justificações — talvez me sentisse menos dependente.
Quando lhe sugeri isso, ele ficou chocado.
— Queres que te pague? Como se fosses uma empregada? — perguntou ele, magoado.
— Não é isso! Quero sentir que o meu trabalho tem valor! Que não sou apenas alguém que está aqui porque não tem alternativa!
A discussão subiu de tom e acabou com Miguel a dormir no sofá pela primeira vez desde que casámos.
Nos dias seguintes, mal nos falámos. A tensão era palpável até para Inês, que começou a fazer birras sem motivo aparente.
Foi então que recebi uma mensagem da minha antiga chefe, Dona Teresa:
“Sofia, precisamos de alguém para ajudar no escritório duas manhãs por semana. Interessada?”
O coração bateu mais forte. Era uma oportunidade pequena, mas era um começo.
Falei com Miguel naquela noite.
— Preciso disto para mim — disse-lhe com firmeza. — Só duas manhãs por semana. Podemos pedir à tua mãe para ficar com Inês nessas horas.
Ele hesitou mas acabou por concordar. Talvez percebesse finalmente o quanto eu precisava de recuperar uma parte de mim mesma.
As primeiras manhãs no escritório foram estranhas e libertadoras ao mesmo tempo. Voltei a sentir-me útil fora das paredes da nossa casa. Quando regressava ao fim da manhã e via Inês correr para mim com os braços abertos, sentia-me finalmente inteira: mãe e mulher.
Miguel começou a ajudar mais em casa, talvez por culpa ou talvez porque percebeu finalmente o peso do meu cansaço.
Ainda discutimos muitas vezes sobre dinheiro e reconhecimento. Mas agora já não me sinto tão invisível.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres em Portugal vivem esta mesma luta silenciosa? Será assim tão errado querer ser valorizada até dentro da própria família?