Quando Aprendi a Dizer ‘Não’: Um Verão no Gerês e os Limites que me Salvaram
— Inês, não podes simplesmente virar costas à tua mãe assim! — gritou o meu pai, a voz a ecoar pela casa de pedra, abafada apenas pelo zumbido dos mosquitos que entravam pela janela aberta.
Senti o peito apertar, como se cada palavra dele fosse uma pedra a empurrar-me para o fundo do lago que brilhava lá fora, indiferente à nossa tempestade. O cheiro a terra molhada misturava-se com o aroma do arroz de pato que a minha mãe preparava na cozinha, como se cozinhar fosse a única forma de calar o que sentia.
— Não virei costas, pai. Só preciso de respirar — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo as lágrimas ameaçarem cair. O meu marido, Miguel, olhava para mim com aquela expressão de quem quer ajudar mas não sabe como. Tinha prometido um verão tranquilo no Gerês, longe do ruído de Lisboa, mas ali estávamos: eu, ele e os meus pais, presos numa casa pequena com paredes demasiado finas para segredos antigos.
A verdade é que nunca soube dizer “não” à minha família. Desde pequena, era a filha boazinha, aquela que não levantava problemas, que aceitava tudo em silêncio. A minha mãe sempre foi exigente — queria tudo perfeito: a casa impecável, as notas altas, o sorriso pronto para as visitas. O meu pai era mais calado, mas bastava um olhar dele para eu perceber que tinha falhado.
Naquela manhã, tudo rebentou por causa de uma toalha molhada deixada no sofá. Um detalhe ridículo, mas foi o rastilho para anos de frustração acumulada. A minha mãe entrou na sala com a toalha na mão, os olhos faiscando.
— Isto é falta de respeito! Não foste tu que aprendeste a cuidar das coisas? — atirou ela.
Senti-me outra vez com dez anos, pequenina e envergonhada. Mas agora tinha trinta e dois e um nó na garganta que já não conseguia engolir.
— Mãe, foi só uma toalha. Não é o fim do mundo — tentei argumentar.
— Não respondas assim à tua mãe! — interrompeu o meu pai.
Miguel tentou intervir:
— Dona Teresa, eu é que deixei a toalha. Desculpe.
Mas ela ignorou-o. O problema não era a toalha. Era eu. Era sempre eu.
Fugi para o jardim, sentindo o calor húmido do verão colar-se à pele. Sentei-me junto ao lago, as pernas encolhidas contra o peito. O silêncio ali era diferente — não era vazio, era cheio de perguntas sem resposta. Porque é que nunca conseguia ser suficiente? Porque é que tudo o que fazia parecia errado?
Miguel veio ter comigo algum tempo depois. Sentou-se ao meu lado sem dizer nada. Ficámos assim muito tempo, só a ouvir os pássaros e o som distante das crianças da aldeia a brincar.
— Inês — disse ele finalmente — tens de te proteger. Não podes continuar a deixar que te tratem assim.
Olhei para ele e vi nos olhos dele uma tristeza antiga, como se já tivesse desistido de me ver feliz ali.
— Não sei como se faz isso — confessei. — Sempre fui assim.
Ele pegou na minha mão.
— Aprende comigo. Às vezes basta dizer “não”.
Naquela noite, sentei-me à mesa com eles. O jantar foi silencioso, cada um preso aos seus pensamentos. A minha mãe serviu-me arroz de pato como se nada tivesse acontecido. Mas eu sabia que estava tudo diferente.
No dia seguinte, acordei cedo e fui dar um mergulho ao lago. A água estava fria e límpida. Mergulhei até ao fundo e fiquei ali uns segundos, em suspensão, como se pudesse deixar para trás tudo o que me pesava.
Quando voltei à superfície, senti uma leveza nova. Talvez fosse possível mudar.
O resto da semana foi uma sucessão de pequenos conflitos: a forma como arrumava os pratos, as horas a que acordava, as conversas sussurradas entre os meus pais quando pensavam que eu não ouvia.
Uma tarde, enquanto Miguel fazia compras na vila, fiquei sozinha com a minha mãe. Ela estava sentada na varanda a tricotar, os olhos fixos no horizonte.
— Inês — começou ela, sem me olhar — tu mudaste muito desde que foste para Lisboa.
Sentei-me ao lado dela.
— Mudei porque tive de aprender a viver sozinha. A fazer escolhas por mim.
Ela suspirou.
— Eu só quero o melhor para ti. Mas às vezes parece que já não preciso de ti para nada.
Senti um aperto no peito. Quis abraçá-la, mas fiquei imóvel.
— Preciso de espaço para ser eu própria, mãe. Não quero magoar-te, mas também não posso continuar a viver só para agradar aos outros.
Ela olhou finalmente para mim, os olhos brilhantes de lágrimas contidas.
— E se eu não souber viver sem cuidar de ti?
Ficámos ali em silêncio, duas mulheres presas entre o amor e o medo da solidão.
Nessa noite, depois do jantar, decidi falar com os dois.
— Preciso de vos dizer uma coisa — comecei, a voz trémula mas decidida. — Eu amo-vos muito, mas preciso de limites. Preciso que respeitem as minhas escolhas e o meu espaço. Não posso continuar a ser tratada como uma criança.
O meu pai ficou calado. A minha mãe chorou baixinho. Miguel apertou-me a mão por baixo da mesa.
Nos dias seguintes houve silêncio e distância. Doeu-me vê-los assim, mas também senti um alívio estranho — como se finalmente tivesse espaço para respirar.
No último dia antes de voltarmos para Lisboa, sentei-me outra vez junto ao lago. O sol punha-se atrás das montanhas e as sombras dançavam na água tranquila. Miguel sentou-se ao meu lado e abraçou-me.
— Estou orgulhoso de ti — disse ele baixinho.
Sorri-lhe com gratidão. Pela primeira vez em muitos anos senti-me dona de mim mesma.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que o medo de magoar os outros nos impeça de sermos quem somos? Será possível amar sem perdermos a nossa voz?