Quando a Verdade Dói: O Dia em que Descobri que a Minha Irmã Estava a Ser Manipulada
— Inês, por favor, ouve-me! — gritei, sentindo a voz embargar-se de desespero. O eco das minhas palavras perdeu-se no corredor estreito do nosso apartamento em Almada, mas ela continuou de costas para mim, os ombros tensos, como se cada sílaba minha fosse uma faca a cortar-lhe a pele.
Nunca imaginei que chegássemos aqui. Sempre fui o irmão mais velho, o protetor. Mas naquele momento, sentia-me impotente, esmagado pela sensação de que estava a perder a única pessoa que sempre me compreendeu. A nossa mãe, Teresa, tossia no quarto ao lado — mais uma noite em que a asma não lhe dava tréguas. Inês era o seu anjo da guarda: aos 28 anos, trabalhava na pastelaria do bairro de manhã e fazia limpezas à tarde. Tudo para que não nos faltasse nada. Eu, Miguel, tinha perdido o emprego há três meses e sentia-me um peso morto.
Foi numa dessas noites em que o desespero me levou a pedir-lhe dinheiro emprestado. — Inês, preciso mesmo de 200 euros para pagar a renda — confessei, envergonhado. Ela olhou-me com ternura e disse: — Claro, Miguel. Mas só posso dar-te metade agora. O resto está… está comprometido.
Fiquei intrigado. Comprometido com quê? Inês nunca foi de gastar dinheiro em futilidades. Insisti até ela ceder:
— É para o Rui — murmurou, desviando o olhar.
O nome soou estranho. Rui? Nunca ouvira falar dele. — Quem é esse Rui?
Ela hesitou antes de responder:
— Conheci-o num grupo do Facebook. Ele está a passar dificuldades em Braga. Precisa de ajuda para pagar uma operação à mãe.
Senti um frio na espinha. — E tu acreditas nisso? Inês, já viste as notícias? Há montes de burlões na internet!
Ela ergueu-se num ímpeto, olhos marejados:
— Não digas isso! O Rui é diferente! Ele fala comigo todas as noites, ouve-me quando estou cansada… Ele preocupa-se comigo!
A raiva misturou-se com pena. — Preocupa-se? Ou está só à espera que lhe envies mais dinheiro?
O silêncio caiu pesado entre nós. A nossa mãe tossiu mais alto e Inês correu para junto dela, fugindo ao confronto.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que tínhamos passado juntos: os natais sem pai, as tardes em que Inês me ajudava nos trabalhos de casa enquanto Teresa limpava escadas para pôr comida na mesa. Sempre fomos nós contra o mundo. Agora sentia que alguém estava a roubar-me a irmã.
No dia seguinte, tentei falar com Teresa. Ela olhou-me com olhos cansados:
— O que se passa com vocês?
Expliquei-lhe tudo, esperando apoio. Mas ela suspirou:
— Miguel, tu também já fizeste as tuas asneiras. Deixa a tua irmã ser feliz.
Fiquei furioso com aquela indiferença. Não era felicidade; era cegueira! Decidi agir sozinho.
Esperei que Inês saísse para o trabalho e vasculhei o computador dela. Senti-me um criminoso, mas precisava de provas. Encontrei dezenas de mensagens do tal Rui: palavras doces misturadas com pedidos de dinheiro cada vez mais urgentes. “Se não me ajudares hoje, a minha mãe pode morrer…” “És a única pessoa em quem confio…” Senti náuseas.
Imprimi algumas conversas e fui ter com ela à pastelaria ao fim do turno.
— Inês, precisamos mesmo de falar.
Ela limpou as mãos ao avental e sentou-se à minha frente, exausta.
— O que foi agora?
Mostrei-lhe as mensagens impressas. Ela ficou pálida.
— Invadiste a minha privacidade?
— Invadi! Porque te amo! Porque não suporto ver-te ser enganada!
Ela começou a chorar baixinho. Os clientes olhavam-nos de soslaio.
— Tu não percebes… Eu só queria sentir-me importante para alguém…
Aquelas palavras partiram-me o coração. Abracei-a ali mesmo.
— Tu és importante para mim! Para a mãe! Não precisas de ninguém que te use!
Ela afastou-se devagar.
— Não é assim tão simples…
Nos dias seguintes, Inês fechou-se ainda mais. Mal falava comigo. Teresa tentava apaziguar-nos:
— Miguel, às vezes as pessoas precisam de aprender sozinhas…
Mas eu não conseguia ficar parado. Contactei um amigo da PSP e pedi-lhe para investigar o tal Rui. Em menos de uma semana tive resposta: Rui não existia; era um perfil falso ligado a esquemas de burla online.
Mostrei tudo à minha irmã. Ela ficou devastada.
— Como pude ser tão estúpida?
— Não foste estúpida — disse-lhe, segurando-lhe as mãos — Foste generosa demais num mundo cruel.
Passaram-se meses até Inês voltar a confiar em mim. A relação ficou marcada por silêncios e mágoas mal resolvidas. Mas aos poucos fomos reconstruindo os laços.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem em invadir-lhe a privacidade? Ou teria sido melhor deixá-la aprender sozinha? Quantos de nós já não caímos nas armadilhas do coração? E vocês, o que fariam no meu lugar?