Quando a Minha Sogra Disse: ‘Então, combinamos assim? Tu é que ficas com o empréstimo.’ – Arrumei as Malas e Voltei para a Casa da Minha Mãe

— Então, combinamos assim? Tu é que ficas com o empréstimo, Mariana. — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoou pela cozinha pequena, abafando até o som do telejornal que Rui tentava ouvir no sofá.

Fiquei ali, parada, com a chávena de chá a tremer nas mãos. O olhar dela era frio, decidido. O de Rui, perdido, como se não soubesse bem onde estava ou o que devia dizer. Eu tinha só dezenove anos, mas naquele momento senti-me com oitenta. Como é que cheguei aqui?

Quando conheci o Rui, tudo parecia um sonho. Ele era divertido, atencioso, fazia-me rir como ninguém. Trabalhava numa loja de informática em Almada e eu tinha acabado de entrar para a faculdade de Letras em Lisboa. Apaixonámo-nos rápido demais, disseram-me todos. Mas eu não quis ouvir. Achava que o amor era suficiente para vencer qualquer obstáculo.

Casámo-nos num verão abafado, com arroz a voar e promessas sussurradas ao ouvido. A minha mãe chorou de emoção e preocupação. O meu pai ficou calado, só me apertou a mão com força antes de me entregar ao Rui. Mudámo-nos para o T2 da Dona Lurdes, porque era mais fácil assim — ela precisava de companhia depois da morte do sogro e nós não tínhamos dinheiro para alugar nada sozinhos.

No início, tentei ver o lado positivo: a Dona Lurdes cozinhava bem, ajudava com as contas e dizia que me ia ensinar todos os truques para manter um lar. Mas rapidamente percebi que ali não havia espaço para mim. Tudo tinha regras: como se dobravam as toalhas, onde se guardava o arroz, a que horas se jantava. Se eu chegasse tarde da faculdade, ela fazia questão de comentar:

— As meninas de hoje acham que a casa se arruma sozinha.

O Rui? Ele encolhia os ombros. — É só o feitio dela, Mariana. Não ligues.

Mas eu ligava. Ligava quando ela criticava a minha roupa, quando dizia que eu devia procurar um trabalho a sério em vez de estudar literatura, quando implicava com o meu sotaque do Norte.

As discussões começaram pequenas: sobre quem lavava a loiça, sobre quem usava mais água no banho. Depois vieram as grandes: sobre dinheiro, sobre filhos (ela queria netos logo), sobre o futuro. O Rui tentava mediar, mas acabava sempre do lado da mãe.

Até ao dia do empréstimo.

A Dona Lurdes queria remodelar a casa — pôr chão flutuante, pintar as paredes, trocar os móveis antigos por outros mais modernos. Disse que era para todos vivermos melhor. Mas quando chegou a hora de decidir quem ficava responsável pelo empréstimo bancário, ela olhou para mim.

— Tu és nova, tens futuro pela frente. O banco vai aprovar mais facilmente no teu nome.

O Rui ficou calado. Eu senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.

— Mas porquê eu? — perguntei, tentando não chorar.

— Porque eu já tenho idade e o Rui tem o nome sujo por causa daquele cartão de crédito — respondeu ela sem pestanejar.

Olhei para o Rui à espera de apoio. Ele desviou o olhar para o chão.

— Mariana… talvez seja mesmo melhor assim — murmurou ele.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto do quarto pequeno onde mal cabia a nossa cama. Pensei em tudo o que tinha deixado para trás: os serões em casa da minha mãe, os jantares barulhentos com os meus irmãos mais novos, os conselhos do meu pai à mesa da cozinha. Pensei no futuro: presa a uma dívida que nem era minha, numa casa onde nunca me senti bem-vinda.

No dia seguinte, enquanto a Dona Lurdes saía para ir ao mercado e o Rui ainda dormia, comecei a arrumar as minhas coisas em silêncio. Cada peça de roupa dobrada era uma memória: o vestido azul do nosso primeiro encontro, a camisola que usei no Natal passado, as cartas da minha mãe escondidas no fundo da gaveta.

Quando ele acordou e me viu com as malas feitas, ficou pálido.

— Vais embora?

— Vou. Não posso ficar aqui assim.

Ele tentou argumentar:

— Mariana… é só um empréstimo. Depois pagamos juntos…

— Não é só isso! É tudo! Eu não sou tua mãe nem tua criada! Eu sou tua mulher! E tu nunca me defendes!

Ele ficou calado outra vez. Sempre calado.

Saí pela porta sem olhar para trás. Apanhei o comboio para o Porto com as mãos geladas e o coração aos saltos. Quando cheguei à casa da minha mãe, ela abriu-me os braços sem fazer perguntas. Só me abraçou forte e deixou-me chorar no seu ombro como quando era criança.

Os dias seguintes foram estranhos — uma mistura de alívio e culpa. Senti falta do Rui, das nossas conversas tontas à noite, dos planos que fazíamos para viajar pelo mundo. Mas também senti uma liberdade nova: podia respirar sem medo de ser julgada por cada passo.

A Dona Lurdes ligou-me uma vez:

— Pensas que podes fugir das tuas responsabilidades? — disse ela num tom gelado.

Desliguei sem responder.

O Rui mandou mensagens durante semanas:

— Volta…
— Eu amo-te…
— A minha mãe vai mudar…

Mas eu sabia que nada ia mudar enquanto ele não crescesse e aprendesse a lutar por nós.

Voltei à faculdade com mais força do que nunca. Arranjei um part-time numa livraria e comecei a reconstruir-me aos bocadinhos. A minha mãe dizia sempre:

— Às vezes é preciso perder tudo para nos encontrarmos.

Hoje olho para trás e penso: teria sido diferente se eu tivesse ficado? Se tivesse aceitado aquele empréstimo? Ou será que teria perdido muito mais do que dinheiro — teria perdido quem sou?

E vocês? Já tiveram de escolher entre vocês próprios e as expectativas dos outros? Até onde iriam por amor?