Prometi-lhe um Sonho, Dei-lhe um Silêncio: O Dia em que Perdi a Minha Filha
— Mãe, já escolheste o presente? — perguntou-me a Inês, com aquele brilho nos olhos que só se vê quando se sonha alto.
O vestido branco já estava comprado, a quinta reservada, e o Rui — futuro genro — não parava de sorrir. Mas eu, Maria do Carmo, sentia um nó no estômago. O presente de casamento era mais do que uma prenda; era uma promessa. Tinha-lhe dito, há meses, que lhe daria a viagem de lua-de-mel à Madeira, com tudo incluído. Era o nosso segredo, o nosso pacto de mãe e filha.
Mas naquele final de tarde, enquanto ela me falava dos detalhes da cerimónia, o telemóvel vibrou. Era o meu irmão, António. Atendi, afastando-me para a varanda.
— Carmo… desculpa, mas preciso mesmo da tua ajuda. O banco vai avançar com a penhora da casa. Não tenho mais ninguém…
Senti o mundo a girar. O António sempre foi o mais frágil dos irmãos. Depois da morte da nossa mãe, ficou sozinho naquela casa antiga em Vila Real. O desemprego, as dívidas… E agora isto. Sabia que se não o ajudasse, ele ficaria na rua.
Voltei para dentro, com o coração apertado. Inês continuava a falar do bolo de noiva.
— Mãe? Estás bem?
— Estou, filha… só um pouco cansada.
Nessa noite não dormi. O dinheiro que tinha posto de lado para a viagem era tudo o que me restava das poupanças. Podia salvar o António ou cumprir a promessa à minha filha. Passei horas a olhar para o teto, a ouvir os ponteiros do relógio.
No dia seguinte, fui ao banco e transferi o dinheiro para a conta do meu irmão. Ele chorou ao telefone.
— Salvaste-me, Carmo. Nunca te vou esquecer isto.
Mas eu sabia que alguém não me perdoaria tão facilmente.
O tempo passou depressa até ao casamento. Fingi entusiasmo, ajudei nos preparativos, mas sentia-me cada vez mais distante da Inês. No grande dia, ela estava radiante. Quando chegou a hora dos presentes, entreguei-lhe um envelope simples.
— Mãe… — murmurou ela, abrindo-o com expectativa.
Dentro estava uma carta minha. Expliquei tudo: o pedido do António, a escolha impossível, o amor que sentia por ela e pelo meu irmão.
Ela leu em silêncio. Vi-lhe os olhos encherem-se de lágrimas — não de alegria.
— Então… não há viagem? — sussurrou.
— Não consegui, filha… Perdoa-me.
Ela afastou-se sem dizer palavra. O Rui tentou interceder:
— Dona Maria, a Inês está muito magoada…
— Eu sei… — respondi, sentindo-me mais velha do que nunca.
Os dias seguintes foram um vazio gelado. A Inês não me atendia o telefone. As mensagens ficavam sem resposta. O Rui ligou-me uma vez:
— Ela sente-se traída… Diz que nunca mais vai confiar em si.
Passei noites em claro a reviver cada momento da nossa vida juntas: os passeios ao Jardim da Estrela, as tardes de estudo na cozinha, as confidências partilhadas à luz de velas quando faltava a eletricidade. Como podia uma decisão apagar tudo isso?
O António ligava-me todos os dias para agradecer. Mas cada vez que ouvia a sua voz sentia uma pontada de culpa. Salvei-o da rua, mas perdi a minha filha para um silêncio ensurdecedor.
No Natal tentei aproximar-me. Preparei o bacalhau como ela gostava e pus à mesa os sonhos polvilhados de açúcar. Mas ela não veio. Mandou uma mensagem curta:
“Não consigo ainda.”
O Rui apareceu sozinho para buscar um prato para ela. Olhou-me nos olhos:
— Ela sente falta da mãe… mas não consegue esquecer.
A casa ficou mais fria nesse inverno. O António veio visitar-me uma vez. Trouxe flores e um sorriso triste.
— Não te culpes tanto, mana… Fizeste o que achaste certo.
Mas será que fiz? Será que uma mãe pode escolher entre dois amores? Entre salvar um irmão e cumprir uma promessa feita à filha?
Os meses passaram. A Inês teve uma menina — a minha neta — mas só vi fotos pelo telemóvel. Cada imagem era uma faca e um bálsamo ao mesmo tempo.
Hoje escrevo esta história sentada na varanda onde ouvi o pedido do António pela primeira vez. O sol põe-se sobre Lisboa e eu pergunto-me: quantas mães já tiveram de escolher assim? Quantos silêncios se instalam entre quem se ama por causa de decisões impossíveis?
Se pudesse voltar atrás… faria diferente? Ou será que há escolhas que nunca deixam de doer?
E vocês? Já sentiram este peso no peito — esta dúvida sem resposta?