O Verão em Que Aprendi a Dizer Não: Quando a Família Não Dá Tréguas

— Outra vez, mãe? Vais mesmo deixar a tia Lurdes ficar cá mais uma semana? — perguntei, já com a voz embargada, enquanto olhava para a pilha de toalhas molhadas no corredor.

A minha mãe suspirou, sem me encarar. — Ela não tem para onde ir, Inês. E sabes como é a família…

Sabia. Sabia bem demais. Desde que nos mudámos de Lisboa para a Ericeira, há pouco mais de um ano, a promessa de tranquilidade à beira-mar evaporou-se rapidamente. O que era para ser um refúgio tornou-se num porto de abrigo para toda a família: primos de Santarém, tios do Porto, até vizinhos afastados que ouviam falar da nossa casa e apareciam com malas e sorrisos.

No início, até achei graça. Era verão, a casa cheia de risos e conversas até tarde. Mas o verão passou, e as visitas não. A minha mãe nunca sabia dizer não. E eu… eu também não sabia. Ou talvez não quisesse ser a má da fita.

Lembro-me do dia em que tudo mudou. Era uma sexta-feira abafada de agosto. Eu tinha acabado de chegar do trabalho — sim, porque mesmo na Ericeira há quem trabalhe — e encontrei o primo Rui sentado no meu sofá, com os pés descalços em cima da mesa de centro.

— Olá, Inês! — disse ele, como se fosse o dono da casa. — A tua mãe foi buscar mais pão. Queres uma cerveja?

Não queria cerveja. Queria silêncio. Queria o meu espaço. Queria não ter de partilhar o meu quarto com a prima Joana outra vez porque “ela sente-se sozinha no quarto dos fundos”.

— Rui, quanto tempo é que vais ficar desta vez? — perguntei, tentando soar casual.

Ele riu-se. — Até domingo, acho eu. Ou segunda. Depende do tempo.

O tempo… sempre o tempo dos outros, nunca o meu.

À noite, sentei-me à mesa com a minha mãe. O jantar era sardinhas assadas e salada de tomate, mas o sabor parecia-me amargo.

— Mãe, isto não pode continuar assim. Eu preciso do meu espaço. Preciso de saber que posso chegar a casa e estar sozinha se quiser.

Ela olhou-me com tristeza nos olhos. — Inês, são da família. Não podemos fechar-lhes a porta na cara.

— E nós? Quem é que nos protege? Quem é que nos fecha a porta para podermos respirar?

A discussão subiu de tom. O meu pai tentou intervir, mas acabou por se calar quando percebeu que era uma batalha antiga demais para ganhar.

Os dias seguintes foram um desfile de pequenas frustrações: toalhas húmidas esquecidas na casa de banho, pratos sujos na pia, conversas altas pela noite dentro quando eu só queria dormir. Comecei a evitar ir para casa. Ficava horas na praia depois do trabalho, só para adiar o regresso.

Uma noite, encontrei a minha mãe sentada sozinha na varanda. Estava cansada, com olheiras profundas e um ar derrotado.

— Desculpa, filha — murmurou ela. — Eu só queria ajudar toda a gente. Mas acho que me perdi pelo caminho.

Sentei-me ao lado dela e ficámos em silêncio durante muito tempo. O mar ao longe parecia respirar connosco.

— Mãe… temos de aprender a dizer não — disse-lhe finalmente. — Não é falta de amor. É amor por nós também.

Ela assentiu devagarinho.

No dia seguinte, quando o primo Rui perguntou se podia ficar mais uma semana porque “a praia aqui é melhor do que em Matosinhos”, ouvi finalmente a minha mãe responder:

— Rui, este fim-de-semana tens mesmo de voltar para casa. Precisamos de descansar.

Ele ficou surpreendido, quase ofendido. Mas foi-se embora no domingo à tarde.

As semanas seguintes foram estranhas. A casa parecia enorme sem as vozes dos primos e tios. No início senti culpa — aquela culpa portuguesa tão nossa, tão pesada como as pedras da calçada.

Mas depois comecei a sentir outra coisa: alívio. E até alegria nas pequenas rotinas: tomar café sozinha na varanda, ouvir música alta sem ter de pedir licença, dormir sem interrupções.

Claro que nem todos entenderam. A tia Lurdes deixou de falar connosco durante meses. A prima Joana escreveu-me uma mensagem passivo-agressiva: “Espero que estejam bem aí sozinhas”.

Mas também houve quem compreendesse. O meu pai começou a sorrir mais. A minha mãe voltou a pintar — coisa que não fazia há anos.

Numa tarde chuvosa de outubro, sentei-me com ela na sala e perguntei:

— Achas que fizemos bem?

Ela sorriu-me com ternura e respondeu:

— Fizemos o que era preciso para sermos felizes aqui.

Agora olho para trás e penso em tudo o que perdi por medo de magoar os outros — e em tudo o que ganhei quando finalmente disse “não”.

Será que é mesmo possível sermos felizes sem desiludir ninguém? Ou será que faz parte da vida aprender a escolher-nos, mesmo quando custa? O que fariam vocês no meu lugar?