O Regresso do Meu Pai: Entre Mágoas e Perdão
— Então, filho… não te importas de partilhar a tua casa com o teu pai, pois não? Não vais virar as costas ao teu próprio pai…
As palavras dele ecoaram no corredor frio do meu pequeno apartamento em Benfica. O cheiro a chuva entrava pela janela aberta, misturando-se com o aroma do café que eu tinha acabado de fazer para mim — só para mim, como sempre fora. O meu coração batia tão forte que temi que ele ouvisse. Vinte anos. Vinte anos sem uma carta, um telefonema, um postal de aniversário. E agora, ali estava ele, com a barba grisalha e o olhar cansado, como se nada tivesse acontecido.
A minha mãe sempre me disse que ele era um homem fraco. “O teu pai não sabe lidar com responsabilidades, Miguel”, repetia ela, enquanto me ajudava a fazer os trabalhos de casa ou me levava ao futebol aos sábados. Cresci a ver os outros miúdos com os pais na bancada, aplaudindo, e eu só tinha a minha mãe — e às vezes o tio Rui, que tentava compensar a ausência do irmão.
— O que é que queres aqui? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo-a tremer.
Ele baixou os olhos, mexendo nervosamente no chapéu velho que trazia nas mãos. — Eu… não tenho para onde ir. As coisas correram mal…
Ri-me, um riso amargo que me surpreendeu até a mim próprio. — As coisas correram mal? E durante vinte anos, correram bem? Nem uma mensagem, nem um postal de Natal? Agora apareces porque precisas de um tecto?
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez. Vi ali uma tristeza funda, mas também uma espécie de resignação. — Eu sei que falhei contigo. Sei que não fui pai. Mas és tudo o que me resta.
As palavras dele magoaram-me mais do que eu queria admitir. Senti-me de novo aquele miúdo de cinco anos à janela, à espera que ele voltasse do trabalho e nunca mais voltasse. Senti raiva. Senti pena. Senti tudo ao mesmo tempo.
— A mãe não vai gostar disto — atirei, quase como uma criança a pedir autorização.
Ele suspirou. — A tua mãe tem razão para me odiar. Mas tu… tu és meu filho.
Fiquei em silêncio. O relógio da cozinha marcava 19h12. O jantar estava por fazer e eu não sabia se devia convidá-lo a entrar ou mandá-lo embora. Lembrei-me das noites em que a minha mãe chorava baixinho no quarto ao lado. Lembrei-me dos Natais em que ela fazia questão de montar a árvore sozinha comigo, dizendo sempre: “Somos só nós dois, mas chega.”
— Não sei se consigo perdoar-te — disse-lhe finalmente.
Ele assentiu com a cabeça. — Não te peço perdão agora. Só peço… um lugar para dormir esta noite.
Deixei-o entrar. Sentou-se no sofá como se tivesse medo de estragar alguma coisa. Olhou em volta, reparando nas fotografias da minha mãe e do tio Rui na estante.
— O Rui ainda está zangado comigo? — perguntou.
— Não sei — respondi secamente. — Ele nunca fala de ti.
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede invisível. Fui à cozinha preparar dois pratos de massa simples. Quando voltei, ele estava a olhar para uma fotografia minha com a minha mãe na praia da Nazaré.
— Estás crescido… — murmurou.
Sentei-me à frente dele e empurrei-lhe o prato. — Não penses que isto muda alguma coisa.
Ele sorriu tristemente. — Eu sei.
Jantámos em silêncio. Cada garfada era pesada, como se mastigasse as palavras não ditas dos últimos vinte anos. Depois do jantar, ele pediu para tomar banho e emprestei-lhe uma toalha velha.
Enquanto ele estava na casa de banho, liguei à minha mãe. Ela atendeu ao segundo toque.
— Miguel? Está tudo bem?
Hesitei antes de responder. — O pai está aqui.
O silêncio dela foi mais eloquente do que qualquer grito.
— Ele pediu-te dinheiro?
— Não… pediu-me abrigo.
Ela suspirou fundo. — Faz o que achares certo, filho. Mas lembra-te do que ele nos fez passar.
Desliguei sem saber o que pensar. Quando voltei à sala, ele já estava sentado no sofá-cama improvisado, embrulhado na manta azul da avó Rosa.
— Obrigado — disse apenas.
Durante dias, a presença dele foi um peso na casa e no peito. De manhã saía cedo à procura de trabalho; à noite voltava cansado e calado. Às vezes tentava puxar conversa:
— Lembras-te quando te levei ao Estádio da Luz?
Eu lembrava-me — vagamente. Era uma memória enevoada pelo tempo e pela mágoa.
— Lembro-me pouco — respondia sempre.
Uma noite, depois de uma discussão acesa com a minha namorada Inês sobre o facto de ele ainda estar ali (“Não podes continuar assim! Ele não merece!”), decidi confrontá-lo de vez.
— Porque é que foste embora? Porque é que nunca voltaste?
Ele ficou muito tempo calado antes de responder:
— Tive medo. Medo de falhar mais ainda. Medo de não ser suficiente para ti nem para a tua mãe. E depois… fui cobarde.
Olhei para ele e vi um homem derrotado, não o monstro da minha infância. Mas isso não apagava as feridas.
— E agora? Achas que podes recuperar o tempo perdido?
Ele abanou a cabeça lentamente. — Não quero recuperar nada. Só quero… estar aqui enquanto me deixares.
Os dias passaram e comecei a reparar em pequenas mudanças nele: arrumava a casa sem eu pedir, deixava bilhetes com recados (“Comprei pão”, “Boa sorte na entrevista”). Um dia chegou com um saco de compras e cozinhou bacalhau à Brás como eu nunca tinha comido antes.
Aos poucos, a raiva deu lugar à dúvida: estaria eu a ser demasiado duro? Ou seria isto apenas mais uma fuga dele à responsabilidade?
O tio Rui apareceu um sábado para ver o Benfica comigo e ficou pálido ao ver o irmão na sala.
— O que é que este está aqui a fazer?
O meu pai levantou-se devagar e olhou-o nos olhos:
— Vim pedir desculpa…
O tio Rui virou costas sem dizer palavra e só voltou semanas depois. A família ficou dividida: uns achavam que eu devia dar-lhe uma segunda oportunidade; outros diziam que estava a ser ingénuo.
No trabalho comecei a sentir o peso da situação: cheguei atrasado várias vezes porque dormia mal; distraía-me facilmente; até os colegas repararam no meu ar cansado.
Uma noite, depois de mais uma discussão com Inês (“Ou ele sai ou eu saio!”), sentei-me sozinho na varanda e chorei como há muito não fazia.
No dia seguinte, tomei uma decisão: sentei-me com o meu pai à mesa da cozinha e disse-lhe:
— Precisas de encontrar outro sítio para ficar. Não posso continuar assim.
Ele não protestou; apenas assentiu e começou a arrumar as poucas coisas que tinha trazido consigo.
Antes de sair, abraçou-me pela primeira vez desde que voltou:
— Obrigado por me teres dado esta hipótese… mesmo sabendo tudo o que fiz (ou não fiz).
Fiquei ali parado depois de fechar a porta atrás dele, sentindo-me vazio mas também estranho aliviado.
Agora pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos falhou quando mais precisávamos? Ou será que há feridas que nunca saram? O que fariam vocês no meu lugar?