O Peso da Decisão: Uma História Portuguesa de Divórcio

— Não aguento mais, Marta. Quero divorciar-me.

As palavras do Rui ecoaram na cozinha fria, entre o cheiro do café acabado de fazer e o tilintar nervoso da minha colher na chávena. Senti o chão fugir-me dos pés. O Tomás, nosso filho de oito anos, ainda dormia no quarto ao lado, alheio ao abismo que se abria sob os seus pais.

Olhei para o Rui, tentando encontrar nos seus olhos castanhos algum vestígio do homem por quem me apaixonei há quinze anos. Mas só vi cansaço e uma tristeza resignada. O silêncio entre nós era pesado, quase sólido. Tentei falar, mas a voz saiu-me num sussurro trémulo:

— Tens a certeza?

Ele não respondeu logo. Passou as mãos pelo rosto, como se quisesse apagar as rugas da preocupação. — Já não somos felizes há muito tempo, Marta. Só estamos juntos pelo Tomás… e isso não é justo para ninguém.

A injustiça. Sempre a injustiça. Cresci numa aldeia perto de Santarém, onde os casamentos eram para a vida toda e as mulheres aguentavam tudo em nome da família. A minha mãe dizia sempre: “Filha, casamento é para sempre. Aguenta e não faças ondas.” Mas eu sentia-me a afogar há anos.

O Rui saiu para o trabalho sem olhar para trás. Fiquei sozinha na cozinha, com o coração aos pedaços e a cabeça cheia de perguntas. Como é que chegámos aqui? Onde foi que nos perdemos?

Nos dias seguintes, tentei manter a rotina para o Tomás. Levava-o à escola primária, fingindo normalidade perante as outras mães no portão. A D. Teresa, vizinha do terceiro andar, perguntava sempre pelo Rui:

— Então, Marta, o Rui hoje não veio buscar o Tomás?

Eu sorria, forçando uma leveza que não sentia:

— Está com muito trabalho no escritório.

À noite, quando o Tomás adormecia, chorava baixinho na casa de banho para ele não ouvir. O Rui começou a chegar cada vez mais tarde. As discussões tornaram-se frequentes e banais: quem se esqueceu de comprar pão, quem não lavou a loiça, quem deixou as luzes acesas. Pequenas guerras diárias que escondiam a verdadeira batalha: já não sabíamos ser felizes juntos.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da luz, explodi:

— Achas que isto é vida? Achas mesmo que o Tomás vai ser mais feliz assim?

O Rui olhou-me com uma frieza que me gelou o sangue:

— Pelo menos vai deixar de nos ver a gritar todos os dias.

No dia seguinte, marquei consulta com uma advogada. Senti-me traidora da tradição da minha família, mas também aliviada por finalmente tomar uma decisão. A advogada, Dra. Filipa, era direta:

— Marta, pense primeiro no seu filho. O divórcio pode ser menos doloroso se houver respeito e diálogo.

Respeito e diálogo… Palavras bonitas para quem já não consegue sequer olhar nos olhos do outro sem sentir raiva ou tristeza.

Quando contei à minha mãe, ela ficou em silêncio durante longos minutos ao telefone. Finalmente disse:

— Não esperava isto de ti, Marta. Mas és tu que vives aí dentro. Só tu sabes o que aguentas.

Senti-me sozinha como nunca antes. Os meus irmãos evitaram o assunto nas reuniões de família. O Tomás começou a fazer perguntas:

— Mãe, porque é que o pai já não janta connosco?

Inventava desculpas: — Está a trabalhar muito, filho.

Até ao dia em que não consegui mais mentir. Sentei-me com ele na sala, abracei-o com força e disse-lhe a verdade — ou pelo menos uma versão suave dela:

— O pai e a mãe vão viver em casas diferentes. Mas vamos continuar a amar-te muito.

Ele chorou baixinho no meu colo. Senti-me miserável.

O processo arrastou-se durante meses. Dividimos móveis, contas bancárias e memórias como quem divide um pão duro: cada pedaço era insuficiente e deixava fome de mais. O Rui arranjou um apartamento pequeno em Benfica; eu fiquei com a casa para manter alguma estabilidade ao Tomás.

As noites eram longas e solitárias. Ouvia os vizinhos rirem-se na varanda e sentia inveja daquela normalidade que já não me pertencia. No supermercado, evitava os olhares das conhecidas que cochichavam sobre “a Marta do 2º esquerdo, aquela que se separou”.

Um dia, ao buscar o Tomás à escola, encontrei a professora dele à porta:

— Marta, posso falar consigo um minuto?

O coração apertou-se-me no peito.

— O Tomás anda mais calado… nota-se que está triste. Se precisar de ajuda…

Agradeci-lhe e fui para casa com um nó na garganta. À noite, sentei-me com o Tomás no sofá:

— Filho… Queres falar sobre o que sentes?

Ele encolheu os ombros:

— Só queria que voltassem a ser amigos.

Chorei com ele até adormecermos juntos ali mesmo.

Os meses passaram e aprendi a viver sozinha. Redescobri pequenos prazeres: ler um livro sem interrupções, caminhar à beira-rio ao domingo de manhã, rir com amigas antigas num café do bairro Alto. O Tomás começou a adaptar-se à nova rotina — fins-de-semana alternados com o pai, férias repartidas.

Um dia, ao arrumar papéis antigos, encontrei uma fotografia do nosso casamento: eu e o Rui sorridentes à porta da igreja de São Vicente de Fora. Olhei para aquela rapariga cheia de sonhos e perguntei-me onde teria ido parar aquela esperança toda.

O Rui e eu aprendemos a conversar sem gritar — pelo menos sobre o Tomás. Às vezes até conseguimos rir juntos das peripécias dele na escola ou dos desenhos animados que ele adora.

A minha mãe acabou por aceitar a situação — ou pelo menos deixou de comentar sempre que nos víamos ao domingo para almoçar bacalhau à Brás.

Hoje olho para trás com tristeza mas também com orgulho: sobrevivi ao naufrágio do meu casamento e consegui manter-me à tona por mim e pelo meu filho.

Às vezes pergunto-me: será que fizemos mesmo tudo o que podíamos? Ou será que há relações destinadas a acabar para podermos finalmente encontrar-nos a nós próprios? E vocês… já sentiram o peso de uma decisão destas?